domingo, 31 de dezembro de 2006

último dia

seria tempo para balanços se fosse pessoa de balanços. o meu balancear ou o meu balanceamento dá-se, se ou quando se dá, no durante, nunca num qualquer depois. não há peso(s). há marcas. marcos. que não delimitam, somente assinalam. mas não há o acto de pesar: o mais, o menos. houve, ponto final. houve o que a memória preserva, dinamicamente. a memória cognitiva, a memória emocional, as memórias...
assim como o que se vê, tende a ser semelhante a nós mesmos, e assim julgamos/vimos os outros - não é, como se costuma dizer, (só) nas costas dos outros que vimos as nossas, é naquilo que se ouve que se vê quem o diz -, julgamos/vimos a nós mesmos, as nossas próprias memórias, a sua (in/)substancialidade também é (parte) do que somos.
2006... foi. como o 2005. como o 200...
fica, vai ficando o que se sente como 'bom', o que ainda faz sentido no presente. porque se não fizer um qualquer sentido, desaparece, ignoramos a sua existência. só existe o que importa, para nós, para aqueles que nos são importantes, mesmo que estes sejam 'desconhecidos'.
é também época de desejos. como se os nossos desejos, o simples acto de desejar pudesse influir no fluir das coisas! já desejámos tantas coisas, tantas pequenas coisas... e alguma vez as fizémos acontecer?! só mesmo aquelas que dependiam exclusivamente de nós. e isso não é desejar, é fazê-las ou tentar fazê-las acontecer.
ainda assim, utopicamente, paradoxalmente, desejo que se tiverem desejos, eles vos aconteçam, se concretizem. todos, alguns, os que puderem ser...
o meu '(não-)desejo', para mim, é simples (é?): nada esperar, saber receber tudo o que vier.

sábado, 30 de dezembro de 2006

queria uma avó velhinha
uma mãe ou uma tia
uma irmã mais velha ou mais nova
queria um colo de mulher
onde me contasse uma história
bem velhinha
uma história como a dela
como a minha




queria uma antiga cozinha
de portas largas e num canto
a lareira, cheia de vozes e
cheiros, com lágrimas ou risos
nos silêncios de irmãs
na escuridão branca

a nuvem musgo

de gotas de letícia

privilégio

enquanto o sol entrar assim janela adentro, e o rio, ora brilhante, ora cinzento, azul, verde, branco... os rios, o de cá e o da outra margem, e a serra da arrábida lá longe, por vezes contorno, outras apenas sopé ou cume, rodeada de neblinas... enquanto o sol ou a lua, e a nuvem baixa roçando o meu braço esticado, e a chuva e a trovoada rebentando pelo adivinhado além-tejo... tudo isto, dentro dos meus mornos lençóis matinais... ahhhh... como é bom estar aqui.

imagem retirada de um catálogo
o sol e a lua, 1956
José de Santa-Bárbara
óleo s/ cartão

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

bendita des-memória

à hora de almoço penso, onde é que passei a última passagem de ano. durante a tarde, de vez em quando pensava nisso... e a pergunta mantinha-se. ao fim do dia, a interrogação continuava. tento telefonar à minha irmã, ela sabe responder concerteza. não atende. na viagem de comboio vou lembrando... do meu sobrinho mais novo contente, rindo, rindo, batendo palmas, com o seu brinquedo giratório cheio de luzes... e nós batendo palmas e rindo com ele.
da última passagem de ano ficou o riso, aquele riso.

e deste natal... o teu olhar pelas palavras, a minha emoção, o nosso abraço. a tua pergunta. é sim, de felicidade. foi, sim, de me/nos tocarmos.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

a princípio uma, duas, uma dezena, uma linha
interrompida pairava escorregadia pelas águas.
gaivotas julguei eu que na noite tinha gritado
ou sonhado, deixem-me ir convosco,
mas elas estavam ali atracadas no silêncio do cais.
as outras, apenas aves, das que vão e
vêm quando é tempo de ir e vir.
e vinham para logo irem, muitas, quais fiapos jorrando
cada vez mais e mais, voando com o olhar
já na foz, tal como aquela correnteza imperceptível
da água. já não era um bando, era um pano
de aves escuras em contraluz, deslizando
entre dois panos cerúleos,
juntando-se lá longe como uma só
asa dançando evocante.
e em revolto véu romperam o horizonte.
no cais em silêncio, eu e as gaivotas.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

Natal à beira-rio

É o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurrecta.
Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado...
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
À beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?

David Mourão-Ferreira

Lugar(es) Efémero(s)

Foi numa noite de Natal, há três anos que nasceu o meu primeiro blog.
Primeiro no blogspot, depois no weblog.
Em Setembro foi a despedida e, passado dois dias, abri este outro lugar.
Porque escrever é-me necessário. Seja em que lugar for, aqui, ali, num qualquer pedaço de papel.
Foi naquele Lugar Efémero que o descobri... depois de uma noite de natal, com mais natal do que eu julguei naquele momento.

Hoje é dia de Natal... um dia para 'nascer'.

Três anos ...

após o meu primeiro post, regresso a este Lugar...

Efémero?

O que há de mais importante - perene - senão o que toca e permanece no coração?


Mais de três meses de ausência, aqui, desvelo - alguns já o saberão - o meu outro lugar.

Por razões diferentes - e como o tempo as faz acontecer - quis ir para um lugar onde se escutasse


(N)O Silêncio do Deserto.


Obrigada aos que ainda continuaram a passar por aqui.



[post escrito em lugarefemero.weblog.com.pt]

domingo, 24 de dezembro de 2006

presentes...

já tenho uns no sopé da árvore, de natal, por abrir. recebo-os e guardo-os. mesmo fechados, no coração. abri-los-ei numa hora especial. pequenos só em tamanho. “miminhos” como chamei àqueles que troquei. fico sempre espantada quando recebo. fiquei ainda mais por todas, no meu local de trabalho, se terem lembrado. o natal não é mesmo num só dia. quando se dá afectuosamente um sorriso, uma palavra de atenção, recebe-se em dobro... no afecto. porque o receber é também uma oferenda...

e há dádivas que nos deixam sem palavras. porque vão directas… tocam num qualquer âmago nosso.

os meus velhos pais natais dizem-me arranja tu a prenda, nós já não podemos caminhar. a deles que se compra, esperará talvez, não sei se terei tempo, também já esperou quase um mês. o gesto deles já é nosso, como sempre, para sempre. esse é uma oferenda. o outro é ‘só’ uma ‘coisa’ – cara, mas não deixa de o ser. prefiro as coisas que não são coisas. símbolos das outras. e ainda falta uma que vou dar. que também me vou dar... iremos receber.

como em criança, não o sendo, já – ainda - sinto um pouco a ânsia da véspera. do adormecer inquieto. dos pés frios. mais logo é natal...

sábado, 23 de dezembro de 2006

A todos os que por aqui passam, o desejo de umas

Boas Festas

do Lat. festas.
f., dia santificado, de descanso, de regozijo;
comemoração, solenidade religiosa ou civil;
festejo, função; romaria; festividade;
fam., grande alegria;
(no pl. ) carícias, afagos.

boas -s: cumprimentos, felicitações por ocasião do Natal e Páscoa; presente que se dá no fim do ano;


de todos estes prefiro o plural... o múltiplo... porque é sempre tempo para um afago, para uma carícia.
mais que desejar, fazê-lo.
mesmo que julgemos que não é importante para o outro, mesmo que o outro não repare...

infâncias...

sábado de manhã. véspera da véspera. de natal. como num dia de natal, o céu azul e frio. não tanto frio como o de dias passados. afinal, a casa, estar em nossa casa, é o nosso centro-lugar, quente. finalmente é hora de fazer a árvore de natal. o silêncio da manhã é quebrado, não por canções habituais de natal – também não sei quais seriam, nem onde as encontraria -, nem por outra música alusiva. no leitor de cd’s, coloco à vez, dois presentes – não sei se de natal, mas certamente de estima, de amizade – com as ‘marchas, danças e canções’ de lopes-graça. um deles, edição do avante, com gravações no coliseu dos recreios em 25 de Maio de 1974, o outro edição da antena dois – as canções, da minha infância, como é o natal. pensei, amanhã à noite, vou levá-los para recordarmos, para os mais miúdos ouvirem – o crédito de ser a tia por vezes é mais ‘persuasivo’ - .
Monto a árvore, os enfeites – todos de outros anos, alguns de muitos, muitos anos – dispostos numa desordem segundo a inspiração e o olhar que se vai construindo – nunca sai muito diferente do habitual, fica – é - sempre diferente em cada ano -. testo as luzes, à noite quando escurecer, acendê-las-ei. no fim, a estrela – tenho à escolha duas estrelas, uma de compra, outra que eu mesma fiz há anos atrás. olho, não há que duvidar, é esta que coloco no pináculo. dou três passos atrás, observo a árvore, e sorrio.
e venho aqui contar, e agora ala… ainda há bastantes coisas para fazer até amanhã.

que espantoso, tinha acabado de escrever, toca o telemóvel. é uma amiga de infância. há mais de 20 anos que não nos falávamos, que não nos víamos. a última vez já tinha sido um encontro de adolescência. fiquei feliz. combinámos encontrar-nos. um destes dias

máscaras de natal

se houvesse máscaras de natal – há-as? – seriam aquelas que ao invés de impedir que se veja de fora para dentro, obstam que se olhe de dentro para fora, vendando os olhos/o coração de quem vê, e não (apenas?) o rosto de quem é visto

sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

perdi-me no teu olhar

alumiei a lua

crio-nos em inaudito solar
perto da madrugada
as aves rasantes
beijam as águas francas
dum tejo
onde se abrigam nuas

domingo, 17 de dezembro de 2006

partir sem partida
sem cais
ou gestos de adeus

uma fragata
em nenhum rio
ou margens apostas

por horizonte
rústicos céus
silvestres águas
esquecer tudo o que se pensou. o que se sentiu. o que se pensou que se pensou. o que se pensou que se sentiu. o que se julgou sentir. nem é esquecer. é varrer com uma vassoura de bruxa, ou fada, tanto faz. nem é varrer. porque ainda ficaria o lixo, os restos, os dejectos. não é acção. de expurgo, de abandono, de limpeza. simplesmente é. como um acontecimento. vindo de súbito. assim sem o querer, sem o pensar, sem o sentir.
vidas de tantos convencimentos, de certezas, de ilusões, de enganos. e como se acredita neles! mesmo convencidos do seu contrário, acredita-se. amarras, sempre amarras que tolhem. mesmo as que se cortam. as que se pensa que já se extirparam. mesmo as que se soltam.
o difícil não é o novo.
é o outro.

sábado, 16 de dezembro de 2006

graças...

Agradecer pelo que não temos…
Sem contar, vou desfiando… menos uma, duas… oitenta e oito bagas de amoras… como contas de um rosário que desconheço. novenas em nome de um outro nome.
Agradecer pelo que temos…

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006


julgo ouvir um som. quase como o início de uma música. quieta nem me lembro de desejar dançar. o quase som estende-se até ser quase audível. prende-me a atenção. e quando o ouço, o distingo entre os sons do mundo, extingue-se. assim veio e foi. não dançarei outro som. não o deste silêncio

quinta-feira, 14 de dezembro de 2006

contrariando a geometria euclidiana

os pontos de duas rectas paralelas, não coincidentes, tocam-se para cá... e para além do infinito.

é o prodígio da geometria hiperbólica, já que não existe 'hipo-bólica'.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

do espírito natalício #4

Este ano ainda não vi o Natal. Não me reconheço neste Natal, das luzes foleiras, das árvores artificiais decoradas artificialmente, dos sorrisos forçados, das mentiras pró-conciliatórias.
Contudo, sei que o Natal está em mim. O meu Natal de criança. Fazíamos com a mãe, a árvore de Natal, com um pinheiro que íamos buscar à rua da frente, depois a areia e as bolas e as fitas... uma vez, fiz uma estrela para o topo da árvore. No fim, uns fios prateados para cobrir a areia, um papel de natal para esconder o balde. E o presépio, que foi crescendo, crescendo com múltiplas figurinhas. Eram todas importantes até o cordeirinho e a casa da montanha. O musgo que íamos apanhar, num domingo de manhã, ao olival. Agora, o presépio está em casa de minha irmã para os meus sobrinhos.
Na véspera, as filhoses começavam a ser feitas, havia força e tempo, força para as amassar, paciência para que levedassem durante horas, dentro de um cobertor, e depois fritá-las, uma a uma, e nós a envolvê-las em açucar e canela. Ainda hoje, só gosto das filhoses da minha mãe.
Até aos oito anos acreditei no Pai Natal. oito ou...? Lembro como se fosse a noite passada. O adormecer. As nossas camas, lado a lado, as brincadeiras, os sussurros, a excitação, a ansiedade, as conversas do adormecer, cada vez mais espaçadas. Nessa noite, nunca me lembro que aparecesse 'o homem da janela' a espreitar, o meu 'monstro' particular.
E muitos dias antes, a carta. Enviada, posta no correio, aonde a minha mãe ia depois pedi-la de volta à chefe da estação. A carta dos desejos... Minha irmã era a escriturária, sempre com um rol de pedidos; eu, dois, três... e ainda tinha de pensar.
Nessa noite, na Noite de Natal, ajudávamos a pôr um paninho bonito, bordado, no poial da chaminé. E se a questão da estreiteza da entrada da chaminé por vezes se colocava, nunca era obstáculo para não se acreditar.
No dia seguinte, de manhã, mal despertava a aurora, a primeira a acordar chamava a outra, e íamos descalças - nem nos lembrávamos das pantufas- a correr para a cozinha. O frio nos pés, ainda hoje o sinto. E era o desembrulhar, as surpresas, o riso, as exclamações, e o brincar, brincar todo o dia. Um tão longo e bom dia.
Esses gestos, esse sentir foram as prendas maiores que ainda hoje recebo. Que ainda hoje ofereço.
Porque não é recordação, porque ainda, hoje, sempre, É.

A árvore de Natal ainda não a fiz. Questionei-me se a faria. Tantas vezes a fiz sózinha. Por mim, para mim. Por aquele Natal. Este ano, fá-la-ei, sim.
Não sei ainda quando, mas fá-la-ei. por mim.

domingo, 10 de dezembro de 2006

Entre o descascar batatas e cebolas, e a panela e o tacho ao lume, de faca de metal e madeira na mão, o pensar e o sentir corre sem prisões. por aqui. por ali. saboreando as mãos ocupadas. e entre isto tudo, seguro um pensamento. e sorrio. e penso Freud deve estar a rir-se. é mesmo, ri melhor quem ri por último.
Dou as mãos à palmatória, e rimos os dois...

A Casa da Lenha

A vida e a obra de Lopes Graça em cena no Teatro D. Maria I (Sala Garrett).
Daquele a que Eugénio de Andrade chamou 'anjo de pedra'. Um olhar de memória(s).
Memória pessoal, interiorizada; mas também memória colectiva de um país - porque a situação do país, desde a implantação da república até pós 25 de Abril, vai trespassando a sua/nossa vida. Daí que esta peça poderá ter uma componente pedagógica importante para as gerações que não vivenciaram nem conhecem as décadas 'cativas' do século XX. (se puderem levem os vossos filhos convosco a vê-la ).
E, claro, sempre a música, elemento fundamental nesta dramaturgia, desvendando a diversidade das obras do compositor, numa escolha criteriosa e límpida que fazem do texto, som e imagem um todo coeso e surpreendente.

Um apurado texto de António Torrado.
Uma óptima encenação de João Mota.
Uma sólida interpretação de Carlos Paulo.
Um excelente trabalho de toda a equipa.
Uma peça de qualidade, a ver sem dúvida.

Ainda uma das canções cantadas...

Oh pastor que choras
o teu rebanho onde está?
Deita as mágoas fora,
carneiros é o que mais há
uns de finos modos
outros vis por desprazer...
Mas carneiros todos
com carne de obedecer.
Quem te pôs na orelha
essas cerejas, pastor?
São de cor vermelha,
vai pintá-las de outra cor.
Vai pintar os frutos,
as amoras, os rosais...
Vai pintar de luto,
as papoilas dos trigais.

José Gomes Ferreira/F. Lopes Graça

sábado, 9 de dezembro de 2006




na praia, os homens afligem-se
pelo esbulho das vagas
às dunas fustigadas
as areias flutuam nas águas
temperadas

quinta-feira, 7 de dezembro de 2006

espírito natalício #3

do verdadeiro espírito natalício... um abraço... livre.

do espírito natalício #2

Adio… adio… ainda não fiz nem uma comprinha. A minha irmã já se encarregou de comprar, com a minha anuência, as prendas para os meus sobrinhos. Obrigada, mana. (Não queres também comprar para os restantes? já agora… e tu gostas de compras, eu detesto. nem para mim. sobretudo para mim.) No passado fim de semana fui a uma grande superfície – obrigações filiais – e fiquei vacinada. Oh que inferno!
Se nunca fez muito sentido, cada vez faz menos. Parte delas vão ser mesmo obrigações sociais. Outras… as familiares, são simultaneamente mais complicadas e mais simples. Se dissesse que não dava nada a ninguém, explicando porquê, não me levavam a mal, eu sei; mas no fundo ficavam sentidos… e já tenho uma certa ‘reputação’ de ‘marginal’… e além disso, não gosto de receber sem dar, mas gosto de dar algo escolhido, algo que seja mesmo para o outro. Ou que eu tenha feito. Vai ser complicado este ano. Não estou mesmo para aqui virada – para o Natal? -. Consumismo infernal! Uma mascarada… deixa-me lá ir comprar uma…

do espírito natalício #1

ou o inferno do trânsito nas semanas que antecedem o natal. No pára-arranca de horas para percorrer meia dúzia de quilómetros na capital, em vez do stress, aproveita-se para ver e pensar. Observar com um olhar semi-distanciado. Afinal, se olharmos de fora, também estou lá dentro. Munidos do subsídio de natal, ou do crédito, toda a minha gente resolve ir para a rua. Vai-se de carro, porque este mês até se tem dinheiro a mais. São as compras depois do trabalho, e lá vamos nós, já estafados de um dia inteiro, para as lojas, escolher a prenda (ou o presente, resolvam o que está na moda!) que gostaríamos de receber e afinal oferecemos ao outro; ou então damos mesmo o que dá mais jeito à carteira, pois até não é tão importante o que damos aos outros. O que importa é comprar e ficarmos em paz connosco próprios porque demos uma quinquilharia qualquer. E saímos das lojas todos ufanos e satisfeitos: "para aquele já está", e riscamo-lo do rol. E atravessamos as ruas cheios de sacos, saquinhos e saquetas, de preferência de marca – sim, porque o embrulho é fundamental – correndo para o outro passeio antes que um condutor impaciente por causa das bichas (sim, na minha época ainda não se dizia filas) nos atropele. E depois as luzinhas, as luzinhas que enfeitam árvores, prédios, as ruas… que bonito! E os cartazes, placards, outdoors, e afins, com tantas caras bonitas, desejáveis, com os produtos ali mesmo à mão … que tentação! Que dias felizes estes que antecedem o Natal!

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

sinto os teus olhos
em mim levanto os meus
seguro o teu olhar
fixo um breve
e quase estremecer
de pálpebras
adivinho
na tua boca cerrada
o quase esboçar
de um sorriso
leve
o coração bate pausado
tumescido

domingo, 3 de dezembro de 2006

hoje quis dizer-te
vi uma espiga
ocre
mas não te encontrei

oito dias depois...












"o outro é um espelho sem o qual não nos vemos, não existimos (...) a única coisa que há para acreditar (...) [É] o único contacto que temos com o sagrado. (...) O amor é o que nos resta do sagrado"


M. Cesariny


Imagem retirada do IPM - Museu do Chiado

sábado, 2 de dezembro de 2006

apanho a areia
vem um sopro
espraia-se cristal

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

estendo o tapete feito de pétalas
cosidas com linhas
das mãos de seda
abro as janelas
de par em par
o campo entra
e com ele o azul lilás
de olhos
abertos
embrulho-me na manta de amoras
vendo o inverno cessar
fecha os olhos meu amor
fecha-os e dá-me a tua mão.
o caminho a percorrer
nunca o saberei, pela cegueira
das águas que em mim
moraram.
aonde estão os meus pés?

quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Ângulos

Suzanne Valadon


Modelo. Pintora.



Nasceu em 1865. Cem anos antes... mais de cem anos depois, quase desconhecida. Posou como modelo, para diversos célebres pintores. Cada olhar, um ângulo. Nesses olhares, ela, no olhar dos outros. Nesses olhares, um (outro) nosso olhar.






por Degas


por Toulouse-Lautrec

por Renoir

Através do olhar dos outros, imagens tão diferentes. Ela.
Pelo olhar de outros, cresceu o seu... e a necessidade de criar.


la femme a la contrebasse
Suzanne Valadon

Não somente ser criatura, mas criadora. Ser outra, ser mais que o reflexo, objecto de olhares.

Ser ela própria a olhar. para si, para os outros. por si.
Divulgando poesia, espalhando afecto, o Sub Rosa é um blog especial.
Por ele, uma pequena partilha:

A LUA NO CINEMA

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

Paulo Leminski

Heterónimos?

http://www.dailymotion.com/video/xf9oo_jerome-murat

ou o bailado de estátuas...

P.S. Eu que não gostava de You Tube e afins nos blogs, estou a começar a render-me...

terça-feira, 28 de novembro de 2006

Desafio a chuva. Ou o sol.
Saio sem aquele objecto absurdo que dizem que nos guarda. – protege de quê? da força, da doçura da natureza? – quando saio da estação, uma desconhecida oferece-me a partilha do seu abrigo. Aceito por delicadeza. Felizmente só ia até a meio do meu caminho. A outra metade…
Chego ao ‘meu’ café com os cabelos guardados por gotas de água.
Durante o dia, foi a vez do sol desafiar-me … (e eu numa reunião)

segunda-feira, 27 de novembro de 2006

noite alva

foi numa noite. numa noite como esta
que se anuncia. de chuva e tempestade.
em casa nesta noite, mergulhou nas águas
quentes, banhou-se, perfumou-se. depois,
vestiu uma camisa leve, acendeu uma vela
e jantou. na tranquilidade do esquecimento
de si. na suavidade de um namoro, consigo. à luz
de uma pequena chama. chegou a hora
de se deitar. sob os ruídos da água
que escorre pela janela, adormece. quente dorme.
nada a acordaria daquele sono fundo. nada
a não ser aquele fragor surdo e longínquo que
se aproximava. como em sonho. um sonho.
não estava acordada. não estava a dormir.
vagamente ouvia, sem identificar. sente.
sente algo que dela se acercava. sente
os braços de um som, daquele som,
sem rosto, sem forma, enorme, imenso, amplo.
sente-os, envolvendo-a, num afago vasto,
largo. o abraço. enleado. cativos. encantados.
já não era ela, já não era o sopro. apenas. o enleio.
nos lençóis mornos as pernas nuas. quentes.
e do corpo, adormecido, entorpecido pela demora,
amanhece a chama. irrompe o tacto e o calor.
e o som abraço, desfigurado, nasce amante.
e no corpo nasce a pele.
e na pele, as mãos.
e o beijo, mais que beijos, carícias.
e o ardor. como se estivessem sob os raios de um imenso sol.
e o clamor. como se inventassem sob as vagas de um silêncio.
iluminados adormecem, clarões, trovões e corpos,
estancados. abraçados.
naquela morte.

o dia desperta alvo.

domingo, 26 de novembro de 2006

em todas as ruas...

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco.



Mário Cesariny de Vasconcelos, 1923-2006
podemos
ser
um paradoxo
estar assim num lugar de silêncio

quinta-feira, 23 de novembro de 2006


        

              o                     r       o
V v t t
i o

o
por linhas t r
t s ...
a
 



Afinal, de nada valeram os cadernos de duas linhas da escola primária.

terça-feira, 21 de novembro de 2006

uma pena
uma leve pena
um leve toque
um toque

prostrada
Para lá da janela, o mundo continua
ruidosamente ensurdecendo-se
Entreaberta
deixo-me contaminar

Não somente consinto neste engano,
mas inda to agradeço, e a mim me nego
tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Camões,
Sonetos

do fingimento do amor

Há dias vagueando por , leio algo que me afecta, me atinge. "O amante é um fingidor." Quanta inteireza neste sentir que qualquer pessoa consciente de si já vivenciou.
(começando a escrever sobre a estética do fingimento. fingimento do amor. recebo um mail sobre o Amor, e aí, o meu fingimento, a meu distanciar, racional, quebra-se momentaneamente. o escrever isto é também um fingir. um querer continuar a fingir que não é o que afinal talvez seja, ou não.)
A incorporação de alteridades, o ser dois, ao mesmo e a outro tempo, substancializa-se de forma ímpar nestes ‘entes’, poeta e amante, daí este inevitável paralelismo (ou equiparação); e não sendo acaso que se torna absolutamente visível na poesia de amor.
É no mundo fingido da poesia (ou do amor, que aqui se confundem ou fundem) que este jogo ficcional/criacional mostra a sua indiscutível verdade. O personagem-poeta desdobra-se não somente nos seus heterónimos, mas a pessoa/amante é ela mesma, várias ‘composições’ de si própria. instinto cénico? lúcida descentração de si? ou um esquecimento de si num outro?
A ‘máscara’ do amor é a que está mais próxima (como segunda – ou primeira - pele) do sujeito amante, mas simultaneamente é aquela que ele sente como mais estranha. E se é também pela sua natureza catártica, arrebatadora, é sobretudo pela potencialidade, pela possibilidade realizadora que ela suporta. É não apenas ser outro, mas ser o próprio que é em simultâneo um mesmo, tão ‘maior’ que se torna outro (não deixando de ser)
…que chega a sentir que é dor/ a dor que deveras sente”* ,
ou seja, sente as duas dores, a que deveras sente e a do fingido sentir, e quem sabe, uma terceira, a de um meta-sentir, a do fingimento de sentir
“porque verdadeiramente/ não sei se estou triste ou não”*.
Perante tanto sentir, poeta/amante também necessita de uma certa ‘despersonalização’, intelectualização ou racionalização; é incomportável, física e emocionalmente, essa permanente e intensa experienciação/criação. Daí a transmutação no ‘próprio’, em consciente, ‘monótono’ e plácido estado (ou projectado estado). Mas esta é também a oportunidade que lhe permite ‘ver-se’ ‘maior’ e logo desejá-lo, assumindo de facto, como seu, o seu próprio ‘fingimento’.
(*) de poesias de Fernando Pessoa.

domingo, 19 de novembro de 2006

o doido e a morte

"Estas duas coisas não podem mais coabitar - esta estupidez e este sonho dorido e imenso, o grotesco de todos os dias, quando do outro lado galopa e passa uma coisa sôfrega e imensa."

Raul Brandão, Teatro

Canções

Em ano de comemoração do nascimento de Lopes Graça e assistindo a um desses eventos, fala-se do compositor e do homem. Escuta-se a sua música, erudita, sinfónica, rústica, de raiz popular, composições para um ‘heroísmo’. Do homem, apesar de algum convívio, pouco ficou na memória. As memórias da infância são sempre autênticas. Cruas. Despem os outros das suas roupagens inessenciais ou artificiais. Ainda mais quando se é apenas, ou quase permanentemente, observador.
Da música do Graça, as canções. Heróicas. Cantadas. Sem querer e por inevitabilidade comparo-as, ou melhor, chamo instintivamente à colação, as de Luís Cília. (que é feito deste músico?). Compositores de poetas. E no assunto de gosto, nem sempre a ‘razão’ condiz com a ‘emoção’. Nem sempre a sofisticação é preferível à simplicidade (de desafectação). Talvez sonoramente mais próximo das palavras; os sons da música servem os da palavra, não o inverso ao pretender a erudição.
As canções cantadas na infância, ouvidas, entoadas em pequenos ‘coros’ familiares. Que concorriam com as marcadamente populares infantis: que linda falua, o meu menino é de oiro, no alto da montanha. E a propósito desta última quase nem quis acreditar quando há uns meses me relembraram que a cantei a solo num palco da Gulbenkian quando era criança. Ido ao baú das memórias, depois de me dizerem, desenterrei uma tão vaga ideia, tão ténue lembrança… no lado esquerdo do palco, a cantar… agora penso, como é que eu não sumi pelo palco abaixo?! será que desafinei um pouco menos do que agora? pois só canto quando a música é mais alta que a minha própria voz. Gostava tanto que houve um registo mais nítido…
Adiante. São aquelas as verdadeiras músicas dos meus inícios. Das canções mais ou menos interditas. Das canções de um futuro: Acordai! Mãe pobre. Ronda. Adeus trigo. Jornada.
São, para mim, canções de sempre. Que envolvem uma emoção muito especial. Canções cantadas, poema-música, com, e para, vozes ‘humanas’.
para quem as saiba ouvir... para quem as saiba cantar...
começos? recomeços? ilusões, construções para pensarmos que podemos ser diferentes? para que a realidade se molde à nossa medida? continuidade(s)? em permanente(s) mudança(s)? ou em quase estáticas e ligeiras evoluções? com ‘saltos’? ou ‘piruetas’? aparências de quem se anseia melhor? mais alto? de quem olha para as asas e vê-as curtas, breves, pequenas para a alma? “já não há começos”. não? e caminhos? percursos diferentes? que por jeito de linguagem ou de pensamento, ou mesmo de sentir, se experienciam distintos, não por rupturas – talvez também não haja fracturas por não haver fragmentos - , por encadeamento(s)? e (se) não havendo início(s), não significa que não exista(m) con- e subsequência(s). e, disto tudo – matéria de procura(s) – reflexos de estradas – remanesce a possibilidade da configuração de um novo final. não é apenas nesse que podemos intervir?

sábado, 18 de novembro de 2006



uma
e
outra
e

o u t r a

o u t r a


a r t u o
r T u o a
ou T ra
O u T r A
e
o u t r a
o .. U ... t .... r .....

terça-feira, 14 de novembro de 2006


o que se descobre na Wikipédia...


O dia do meu nascimento, é segundo a mitologia celta, o dia das Dríades. "A dríade ou dríada, na mitologia grega , era uma ninfa(*) associada aos carvalhos. A sua existência estava vinculada à da sua árvore; caso esta fosse abatida, a ninfa pereceria"

(*) Ninfa deriva do grego nimphe, que significa "noiva", "velado", "botão de rosa", dentre muitos outros significados. As ninfas são espíritos, geralmente alados, habitantes dos lagos e riachos, bosques, florestas, prados e montanhas.

segunda-feira, 13 de novembro de 2006

uma tarde diferente

Isto do 'serviço exterior' ao local de trabalho - e já vão dois nos últimos 8 dias - tem coisas positivas. um dos aspectos é poder andar... andar ao sol. apanhar um pouco de ar ao invés de estar dentro de 'casa' todo o dia. Por causa dessa carência, na semana passada, fui fazer uma espécie de piquenique ao pé do rio, à hora de almoço. Foi só uma aproximação. Que saudades de um piquenique a sério. Lembro-me que há 4 anos também me deu uma vontade enorme. Cheguei mesmo a fazer um convite para a serra de Sintra, mas o piquenique ficou por fazer. E que me lembre, ainda não o fiz... desde essa altura. Comer sob as árvores, ou à beira mar; e não metida dentro de uma casa ou restaurante. Até a comida sabe diferente. Mas não era disso que vinha falar - se é que vinha falar de alguma coisa em especial que não o prazer que tive ao andar um pouco na baixa, à hora de almoço e à tarde. Andar de metro... ah, já se ouvem os telemóveis! nem ali escapam... revisitar locais que, coincidentemente há 4 anos, também percorria várias vezes na semana. os afectos longínquos, vagos, mas de alguma forma presentes. ali... lembro... aconteceu isto. aqui... e sorrio... foi aquilo. os lugares conhecidos. um reinício de vida. sempre. naquela altura, agora, sempre. depende mesmo do nosso olhar! do modo como nos vivemos. E hoje, sinto uma maior segurança em mim (lembro que alguém nessa altura se referiu a mim como uma pessoa segura - nunca soube se intelectualmente se em termos pessoais - e para mim própria sorri, como sorri quem se sabe). E isso nota-se na minha atitude. Mas sempre abertura, receptividade. E foi bom conhecer e estar em meios mais 'reservados', aprende-se sempre. Se se souber ver.
Vejo o livro numa estante de casa de meus pais. como de vez em quando faço, pergunto: posso [levar]? o autor nada me dizia, parecia-me de leste, mas só hoje, quando acabei de ler é que vim à net ver o que dele diziam.
Ivan Klima. "Amor e desencanto" (na tradução brasileira Amor e Lixo), Bertrand Ed.
Autor checo, nascido em 1931, de origens judaicas, esteve num campo de concentração com 14! anos de idade. O livro, uma boa surpresa. O que me levou a pegar nele foi o título... tipo deixa cá identificar-me um bocadinho com as minhas desgraças, não quero neste momento livros pesados. Azar... ou sorte a minha. as minhas desgraças entretanto já tinham voado e o livro, apesar de não ser excepcional, foi uma boa revelação. A personagem central, um homem, um escritor que escolhe ser um homem do lixo, vulgo almeida. Aqui e ali, referências a Kafka; e sempre a sua posição neste mundo e nas relação humanas, em particular, a sua própria relação com os afectos, com o amor, com a solidão, com o(s) encontro(s).
"o paraíso não pode ser fixado numa imagem, porque o paraíso é o estado do encontro. (...) O paraíso é, sobretudo, o estado em que a alma se sente limpa." (última página)

domingo, 12 de novembro de 2006

faz-de-conta

regresso à infância. à minha infância. brincando. brincando de faz-de-conta. faz-de-conta que brincamos. faz-de-conta que construímos uma casa. uma grande casa. com coisas bonitas lá dentro. à volta uma vedação. que não é fechada nem aberta. em torno de um tapete verde e cinzento. talvez mais cinzento do que verde. manchado. fazemos de conta que é preciso um lago. vamos construir um lago. um lago não de água. de terra. com paus que em vez de peixes, parecem tubos de aspiração. faz-de-conta que brinco. que estou ali a brincar. e de repente o jogo é outro. vamos brincar às escondidas. estou cá. já não estou. já estou mais uma vez. e não estás. eu estou atrás de uma árvore. tu? tu, não sei. se soubesse não era às escondidas. também podíamos brincar à apanhada. mas era preciso correr. e eu já não corro. só aos bocadinhos. o fôlego já não é o que era. maldito tabaco! não sei de ti. a sério! afinal o jardim era grande. como na sensação de criança. e em vez de um lago, fizemos vários. pequeninos. aqui. ali. fizemos? às tantas fui eu que os fiz. fiquei sozinha a brincar. faço de conta que estou a brincar. mexendo em legos. parece que brinco sozinha. todas as crianças, no fundo, brincam sozinhas. todas as crianças brincam a sério o faz-de-conta. começo a construir um castelo. brincando de princesa? desconstruo. –o. reconstruo. –o. concluo: não tenho peças. só um palco onde represento. onde jogo com duas bolas vermelhas. duas? não, uma para mim. a outra ficou quieta à tua espera. à espera que viesses brincar. já não são bolas, faz-de-conta que são maçãs. vermelhas. eu como a minha. a outra… a outra fica no cesto. e faz-de-conta que se faz tarde. o jogo a brincar acabou. vamos agora brincar a sério. como os jogos que começam a brincar e, a certa altura, sente-se que é afinal é a sério. com beicinho, com lágrimas e tudo. tudo silencioso. rodeio o nosso castelo. meio edificado, meio por acabar. no regresso a casa, a música do faz-de-conta que é música. ponho-a alta, tão alta que faz-de-conta que os baixos são distorcidos baixos superprofondos. alta para fazer de conta que não se ouve o que é a sério.

nesta luminosa manhã, o rio bordado com pós de prata.

incorporeidade

um dia de semana. útil, como se convenciona designar. na carruagem de comboio, climatizada, não lê, ao invés do habitual. nem se lembra de tirar da mala o livro, o jornal ou o caderno. senta-se e olha. talvez para os armazéns, para as casas, para as fábricas que se movem em sentido contrário. ela parada, fixa num exterior. só a chegada do rio talvez a tenha despertado, mas se lhe perguntassem não se lembraria dos tons cinzentos? azulados? anilados? levanta-se e aproxima-se da porta ao chegar à estação de destino. automaticamente como faz todos os dias. começa a andar, rodeada de gente que, por entre as portas da gare, se dissipam. escolhe, como sempre, o caminho mais solitário. não por ser mais perto ou mais longe. caminha por uma rua, depois por outra. e a meio dessa, um sentir estranho. uma percepção desconforme de qualquer consciência. como se não estivesse ali. fosse outra sem o ser. a outra que progredia pelo passeio não é ela. e ela? onde está? não ali. não em lugar nenhum. desmaterializada? mas o corpo continua a mover-se, a atravessar a rua. chega ao café onde todos os dias se senta e aguarda que a empregada lhe venha trazer o habitual. basta um bom-dia. diz bom-dia. e senta-se quase em frente ao balcão. em local visível. aguarda que lhe tragam o café e o copo de água. mas não é nisso que pensa. nem pensa em nada. agarra num guardanapo de papel. pela primeira vez na vida chega àquele café e agarra num guardanapo de papel. num impulso irresistível de fazer um origami. sente outras pessoas a entrar. começa a brincar com o pedaço de papel. começa a dobrar o papel. um barco. uma das poucas dobragens que sabe fazer desde a infância. lentamente começam as formas a surgir. sem dar conta do tempo. do espaço. faz e refaz. dobra e desdobra. ela? as mãos. as suas mãos. nela, só as mãos existem. lentas e determinadas. quando enfim acaba, como que desperta. todos os que tinham entrado já tinham sido servidos. do seu café nem sinal. a moça continuava a servir os pequenos-almoços. de barco de papel na mão, ainda brincando com ele, aguarda, sem fazer nenhum sinal. ao fim de um tempo, a rapariga cruza o olhar com o dela – Ah! esqueci-me de si, desculpe! quando vem com o café e o copo de água e o pousa na mesa, escusa-se mais uma vez. e ouve então uma resposta insólita: - Por acaso, eu já vinha com uma sensação estranha… de invisibilidade, e pelos vistos deve ser mesmo. – Não, não, eu vi-a entrar… mas depois esqueci-me. Sorrindo, ela reafirma: - não, a sério, hoje vinha mesmo…

sábado, 11 de novembro de 2006

Ainda estive para dizer:
-Eu não sei se a amaste, ou a amas... ou se simplesmente amaste-te através dela, amando o amor que ela sentia. Só o teu coração o saberá...
Calei-me. Podem as palavras, uma frase mudar, quebrar a distância que nem o próprio sentir aproxima?





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Mais tarde, disse tranquila:
- Foi bom teres-lhe escrito, confessado o teu amor - mesmo ante a perplexidade dele -, o que querias do amor, do 'pequeno' amor que ficou por cumprir... em Amor.
Vem à memória a frase de Dante: amor que a nenhum amado amar, perdoa.
- Não te sentes mais liberta? com mais amor?

delicioso!!

Escrevia, em 1888, Eça a Fialho de Almeida:

"Em Portugal há só um homem - que é sempre o mesmo ou sob a forma de dândi, (...) ou de capitão: é um homem indeciso, débil, sentimental, bondoso, palrador, deixa-te ir: sem mola de carácter ou de inteligência, que resista contra as circunstâncias. É o homem que pinto (...) E é o português verdadeiro. É o português que tem feito este Portugal que vemos"

Agora... quem quiser que enfie a carapuça... e não me venham com 'o filho de boa gente...'
pelo anoitecer
fui filha do vento
nascida de um ovo
de todas as cores

pela mão do sol e da água
- arco de sete íris -
subindo ao rochedo
com os olhos vendados
abraçei a frágua
e a bela luz de cera
no beijo feneceu

por atraída traição
muito errei pelo mundo
atraiçoando-me em mágoa
desgarrada constelação

pelo frio e antigo fado - anelo
atento o resgate ignorado

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

privilégio

é sempre um privilégio ter amigos. sentirmos o afecto por alguém, partilharmos, em relação, momentos únicos que ficam na memória. na memória afectiva. um riso, uma frase, um carinho, um toque no braço, no ombro, na face, uma palavra dita em determinada entoação, um abraço, um olhar breve ou prolongado... o sorriso irónico ou triste ou uma espontânea gargalhada… o estar e o ser… é por, e com estas “pequenas coisas” que as pessoas se vão tornando grandes para nós. há pessoas com quem estabelecemos quase imediatamente uma relação especial, tal a empatia que sentimos. como se a conhecêssemos há mais tempo. como se a sua sensibilidade, a sua forma de olhar, de sentir ou de pensar o mundo fosse reconhecida como nossa. e mais especial se torna porque não acontece frequentemente. quando acontece, sinto-me privilegiada. poder receber o muito que têm para dar. poder dar a quem nos recebe de coração aberto. e se se experiencia alguma tristeza quando partimos transitoriamente (porque nestas relações não existe o temporariamente), também nos sentimos repletos, maiores do que somos.
e sempre me deu vontade – talvez ingenuamente - de compartilhar este sentimento singular com os outros de quem gosto, de participarem na minha alegria.

quinta-feira, 9 de novembro de 2006

na noite de nuvens baixas, a terra é corpo in-visível.
não há gratuitidade. a via láctea é uma espiral.

domingo, 5 de novembro de 2006

encontrei um pássaro. sem nome sem coroa. pardal?
um pássaro encontrou o caminho de nossa casa
nele, poisaram os meus olhos, no beiral
estática fitava. o mel e o negro das suas penas
uma a uma que polia. trémulo agitado num ápice
adiado, a um ruído é quase fugidio
de respirações suspensas habitadas nos olhares
brusco levanta voo escondido atrás das asas
despovoada cravo-me nas vidraças

sábado, 4 de novembro de 2006

à volta de um pano cru

nas areias de um deserto ou de três. desertos. três personagens sentadas. à volta de uma mesa de pano cru. um só pano. heterónimo. ele. outro. outros. comem e bebem e falam. se fossem antigos seria o banquete, ou do amor. três vozes. por vezes, prosas amenas, outras conversas acesas, ou lutas cruentas. tanto que chegam ao fundo do deserto. e de lá retornam ecos. nada que faça parar os transeuntes, viajantes de outro deserto. estes olham, para lá ou além, sem abrandar os passos. nas três areias de um deserto, à volta de um pano cru.

no traço mais fino linha
quase invisível
adormece
meu delito
resta cobrir-te de seda
e água nessa brancura
gelada de seio
de pietá
desfalece figura
de mármore desafoga
esse risco que se
apaga expira
nesse regaço
requiem
por uma aleivosia
pelo chão desaparece
o traço

sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Já estava a pensar nisso... a questão estética... aquele azul-verde da imagem abaixo não coaduna... há qualquer coisa que choca com o amarelo-castanho da barra. tenho de os separar... nada melhor do que um post idiota como este... até porque está de maré!
e a propósito de atarantada... é como regressar à superfície e levar com uma onda, das grandes, na cara... até se deixa de ver o que quer que seja.
ao nadar por águas profundas encontra-se tanto que custa voltar à superfície.
fica-se atarantada ao percorrer os corredores de um grande hipermercado

quinta-feira, 2 de novembro de 2006










“Ser pedra é fácil, difícil, é ser vidraça.”


(Provérbio Chinês)


enviado pela L., nem de propósito...

finado o dia - os dias os anos
quarenta e um risos
da morte choremos os mortos
choremo-nos
e aos mortos-vivos,
com eles na urna
descansemos
para sempre na paz
dos senhores,
sele-se o caixão antes do fedor
antes
dos torrões a flor
tapa-se a cova vira-se
costas vai-se à vida que a morte é
certa e dor

em cada degrau a descida
aos infernos

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

desperto a soluçar
minha irmã estava a morrer
cubro-me de angústia

a neblina do dia devolve a realidade
estamos todos


(por entre cores do outono)
nunca escrevi um livro
nunca fiz um filho
talvez coisas parecidas
uma árvore... ? numa outra vida...?

planto sementes de coentros num pequeno vaso

terça-feira, 31 de outubro de 2006

enrolada numa lágrima
dou o que o meu coração
exige
silêncio


um grito ecoa no deserto

"Ama-me quando eu menos merecer, pois é quando eu mais vou precisar...." (Provérbio Chinês)

Encontrei esta frase, transcrita por mim, num caderno antigo. nessa altura, acrescentei (confúcio). não sei onde a li ou a ouvi. mesmo não me agradando o termo merecer não encontro nenhum que o substitua. fico com o seu melhor sentido.
Volto a encontrá-la neste blog com uma antologia de Mário Quintana.

Nenhum sentido encontro à célebre frase:
"Cada um tem o que merece"
é falsa, é injusta, desprovida de bondade. mas é a que mais se ouviu, infelizmente.
Não. Há muita coisa que ninguém merece! Alguém merece morrer à fome? Adoecer? Alguém merece não ser pessoa? Não, nem dizendo a brincar, se ouve incólume...

segunda-feira, 30 de outubro de 2006

sangro
sangro por dentro
sangro mais do que se tivessem arrancado um dente
sangro com sangue escarlate
sangro e nem apará-lo com um maço de algodão
- também não valia a pena -
sangro sangue nas mãos
na boca anestesiada
comendo saliva
sanguinolenta
donde veio? - veia
dum coração incauto e
sangrento
ego-ista
de repente repara-se num detalhe e muda tudo. pelo menos, muito. ter esquecido de ver um pormenor. como é possível que estivesse lá e não o ter visto? ainda por cima tão visível. tão afamado?! o que era um quadro claro, límpido, consistente, torna-se confuso. seria uma minudência se não estivesse num lugar fulcral. a intencionalidade, o a(in)cidente, a ocorrência altera-se porque existe aquele risco, aquele traço. e o outro? aquele que confina com ele? desapareceu, apagou-se? poderia esse desaparecido mudar o olhar?
e mudará, de facto, tudo? ou quase tudo? ou quase nada?... ou nada?! como é possível confiar nas contaditórias... sensações?

Episódios femininos

A prova pública - social - de um corte de cabelo

Ao longo do dia, espaçados comentários, elogios ao cabelo. Num local de trabalho exclusivamente feminino não é de estranhar. Menos uma. uma das que esperaria um reparo imediato. Mas não julgo que a razão mais forte seja a mais evidente (em bom português, dor de cotovelo), é o nosso progressivo afastamento (ando sem paciência para a incompetência*), mas sobretudo porque tinhamos já falado de cortes... de cabelo, tendo-me proposto a sua cabeleireira. Quando a vi depois de ter utilizado tais serviços, afirmei para mim própria que nem de graça iria lá. Era um pavor.
Mas o que mais me tocou aconteceu no café onde vou à hora de almoço. Duas moças simpáticas brasileiras que já conhecem os meus hábitos. Uma delas, ar de rapariga novinha, cerca de 20 anos - e já tão longe de casa a ganhar a vida - aproxima-se e diz, com uma voz extraordinariamente doce, cantada como só falam os brasileiros, espontânea, quase deliciada:

- O seu cabelo está tão bonito!

O que eu poderia responder? apenas o que senti: - gostei tanto que mo dissesse!


* Se estivesse identificada, aqui, talvez não devesse ser tão explícita... mas não fingimento, nota-se bem no olhar que mostro à pessoa e vou-lhe dizendo de outras formas.

domingo, 29 de outubro de 2006

almoço tardio

aqueço a água no micro-ondas. barro bolachas quadradas com o doce de abóbora. abóbora e pinhões. doce feito numa tarde de outono. por mãos de ternura. costuma-se pôr nozes no doce. não havia nós(es) só pinhões. pequenos e esguios. na água, uma infusão, uma fusão de cidreira e mel. àquela os gregos designavam-na por erva do mel de abelha. seiva nectár. oferta desejo doce dos deuses, dos céus.

são 3 horas. da tarde. ou 15
seriam 4 horas, pela hora de ontem.
não há sol às 3 ou às 4...
e às 5 ...?
é preciso sol?
Não devia ter cortado o cabelo...
cobria os meus medos

sábado, 28 de outubro de 2006

Vem...

...
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Pelos campos a fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo canhões
Vem vamos embora que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora não espera acontecer
...

Pra nao dizer que nao falei de flores
(Geraldo Vandre) cantada por Simone


Por nós.
talvez um dia saibamos...
ser amantes amadas.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

porque choras
vi no espelho
o caminho que percorri
já não consigo ver
doem-me os olhos
choram-me as lágrimas

quinta-feira, 26 de outubro de 2006

- sabe o seu signo chinês?
- sei
- …
- …
- serpente
- hum
- porquê…?
- se eu lhe dissesse, estragava a surpresa.

(???)

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

o oculto segredo que ela guardava estava à vista de todos. era ela própria, secreta.

os educadores... do povo

-Então já votou?
- Votei?
- No português mais...
- Ah! Não! Nem vou gastar dinheiro com as ideias que uns sujeitos resolvem ter...
- Mas pode-se mandar por mail. Só se paga telefonando ou por SMS. O prof. Marcelo disse, no outro dia, que já votou.
- Ah! O professor...
- Sim, o nosso grande professor...
- Pois, o educador. O educador do século XXI. Pois é, nos anos setenta tínhamos o nosso Arnaldo de Matos, no século XXI é o Marcelo, o grande educador... do povo.

(sinal dos tempos... acrescento agora)

terça-feira, 24 de outubro de 2006

Se

A vida não é vivível em termos de "Se...".
Se a nossa mulher não tivesse um amante... Se tivessemos encontrado aquele conhecido que naquele momento sabia de um trabalho que queríamos muito... Se a média de entrada para a faculdade nos tivesse colocado noutra academia, ou noutra cidade... Se tivessemos parado naquele instante em que aquela pessoa de que já esquecemos o rosto, nos olhou acidental ou intencionalmente na rua... Se morassemos noutra localidade com outros amigos, outras relações... Se tivessemos mais ou menos 15 anos... Se tivessemos dito aquela palavra, feito aquele gesto... Se tivessemos outros pais, ou irmãos... Se os nossos pais não se tivessem amado momentos antes da nossa concepção... Se...
a nossa vida poderia estar repleta de Se's.
Haveria uma infinidade de Se' s relativamente ao que poderia ter acontecido, sido, existido, ou ainda não acontecido, não sido, não existido... ou àquilo que nós julgaríamos que poderia ter acontecido ou não, sido ou ...
E se uso o tempo passado, uso erroneamente, porque no Passado não há um único Se.
A existir, o Se é do porvir (por-vir).
Enquanto o Futuro não se torna Presente...
Enquanto ainda podemos agir.

domingo, 22 de outubro de 2006

… antes da hora do sol do meio-dia…ou... na raiz de uma árvore

a dúvida. a dúvida. terrível dúvida. uma pergunta ecoa. quem dera não a ter. não precisar de uma resposta. sabê-la com sei que o sol nascerá um e outro dia. as duas respostas possíveis – talvez hajam mais -, as que vislumbro. ambas temíveis por razões diversas. a cegueira. a claridade. ambas ferem, ambas feriram. em ambas, as sombras. pela escuridão, pela luz excessiva. não é o olhar a espada, apesar de penetrar. o olhar é a mão suave que pousa em meu leito. que o quieta. que o inquieta. creio e descreio. talvez não seja só eu. talvez um dia tenha sido também alguém que criou a crença e a descrença. porque se vendaram os olhos. porque se aprisionaram as mãos. imóveis e cegos. e o coração deixou de bater. descompassadamente. nenhum coração aguenta o movimento alternado de luz e escuridão. nenhuma respiração pode ofegar para sempre. uma mão sobre o peito. iluminando o que é tão simples alumiar.

sábado, 21 de outubro de 2006

Espelho meu...


Como na história da Branca de Neve, há espelhos. Espelhos que reflectem o nosso melhor lado. Ou outros, em que o que incide é o que de pior existe em nós. E todos somos como a madrasta: diz-me espelho meu, há mulher(homem) mais bela(o) que eu? (poderíamos seguir uma outra linha… não quereria a madrasta, no fundo, ser apenas amada? Nem que para tal tivesse de eliminar a concorrência?)
É isso que procuramos no amor. Ou o amor também é isso um espelho... quanto mais amamos, mais nos amamos. Sermos considerados os mais valiosos, os únicos.
Poderia ter ido buscar o livro Justine de Lawrence Durrell, mas aquela história de encantar traz-me melhores recordações. Espelha um lado melhor…

Imagem retirada de: http://members.tripod.com/volobuef/page_maerchen_ilustracoes_volksm.htm

private post

Dois anos numa caixa.
nem é de sapatos...
por ironia, de um pequeno electrodoméstico.
e nem uma lágrima...

Está guardado...
arrumado, como tanto insistias. o passado.

Falta um outro pedaço... pelo menos o meu... as fotos em que estou eu.
e não sei de uns papeis que eram só meus, desapareceram.
hoje houve palavras a mais. num dia demasiado comprido. preciso do pouco. preciso do quase nada. não suporto as certezas nem a dúvida. uma mão que estende pelo atlântico. a outra bem mais perto. é assim que quero adormecer. assim dormirei.

sexta-feira, 20 de outubro de 2006

teriam de arrancar todo o meu coração
para extirpar aquele grão.
Chove lá fora. muito. muito. se estivesse lá fora, ficaria encharcada até aos ossos. diz-se assim e assim seria. encharcada. mais que molhada. pelo poder purificador da água. pelo excesso destruidor da água. a água. coisa essencial à vida. são apenas palavras. com as águas. quase me vejo a sair a esta hora maldita da manhã. da madrugada. para a receber. em mim. talvez fosse isso que me acordasse. de um sono já demasiado leve. o seu ruído forte a bater nas pedras, nos beirais, na janela. como palavras a bater, em mim. em ecos semi-adormecidos. em sonhos interiores-anteriores. quase me vejo a sair por esta escuridão matinal, sob as chuvas que batem. batem, em gestos doridos. sem fazer mal. porque não é por mal. apenas É. quem sente é que a sente. ela só é. quase parou de chover agora. lá fora. já não poderia ir lá para fora. já quase não chove. já quase não tenho sono. cansaço de noite mal dormida. pouco dormida. já não iria lá para fora, para a chuva. iria para perto da ria. adormecer tranquila. nos seus braços.

quarta-feira, 18 de outubro de 2006

des-montagem

Sentada no chão tijolo da sala. Possuindo por inteiro, os derradeiros momentos. Tinha sido mais do que um compartimento. Agora, um espaço vazio. Quase. Aqui e ali jaziam uns materiais, mais ou menos arrumados, encostados às paredes, prontos para seguirem o seu destino. Regressarem ao seu legítimo proprietário. Mais além, destroços de um acontecimento. Como todos na vida, com início e términos. Como tudo, de condição efémera, persistindo sob outra forma. Na memória. O após da co-memoração. Rememoração eterna enquanto quem a guarda, existir. Pela circunstância de primordial, acrescida de situação de feito maior, torna-se inscrita, indelével.
A sala quase vazia, hoje; amanhã, voltará a animar-se de cores, outras. A nostalgia orgulhosa de a ter visto plena, de a ter feito inteira. A melancolia da antevisão da próxima; não terá a mesma emoção e a inocência da virgindade.
silêncio, memória, marítimo, reflexos, pormenor. Sessenta e oito grandes detalhes de algo desmedido. Irrepetível. Sucedeu no ano da graça de dois mil e seis.

últimos instantes

O sibilo do vento entrando pela fresta da janela, entreaberta. Algures pelo céu, o retumbar dos trovões, o fulgor dos relâmpagos espalhando-se por entre nuvens nocturnas. O movimento ondulante, cadente da persiana quase fechada. Querendo penetrar. Como o sono invadindo o corpo. De supetão invernal. Deitada nos lençóis ainda frescos, escreve. A caneta, a sua última ligação ao verão.

terça-feira, 17 de outubro de 2006

cingindo palavras
os meus olhos não são a tua mão
mudo-lhes o sentido
avanço na direcção do mar

segunda-feira, 16 de outubro de 2006

às 4 da tarde...

Não tinha voltado àquele lugar desde aquele dia. memória sobre memórias. hoje e ontem e anteontem. sentada no sítio oposto. como se me visse do lado de lá, sentada. bastaria atravessar a ponte. como se me quisesse ver uma vez mais que não fosse essa vez.
A importância dos lugares. mais do que os rostos. esses, muitas vezes esqueço-os ou não os identifico instantaneamente. dos lugares raramente me perco. mesmo que sejam lugares de uma única vez. saber voltar a esse sítio é como soubesse regressar a algo que sou.
Foi ontem. hoje. lugares diferentes. o mesmo. o da memória. simultaneamente longínqua e próxima - intrínseca. da memória incompleta. acrescentada. o desejo na memória. o que não foi, mas que lá estava. as rectas de um caminho nem sempre passam por lá outra vez - nunca passam. percorrem outros mesmos lugares.
Este está diferente. igual diferente. como nós. como a maçã que acabei de trincar sentada no gramado. está temporariamente fechado, parcialmente fechado. há acontecimentos de que não fazemos parte. não são nossos. os nossos.
Olho para o outro lado. a margem onde já estive. ainda não me vi. Vi sim. desejo de realidade criada. olho bem, para lá. está lá tudo, quase tudo. falta... além, só falta o hoje. o agora, aqui.
Sei que daqui a pouco me vou perder nos rostos e nas figuras sem rosto, inclinadas, tombadas, nas árvores despidas, em paisagens desoladas com casas. vou ser a minha própria personagem. ser a mão que a criou. e apenas um olhar a vislumbrará.
Por ora escuto o som do vento, o restolhar das folhas das árvores, o retombar das pedras de outros tempos, o silêncio da cidade.
E olho. olho para o lado de lá. bastava atravessar a ponte...

domingo, 15 de outubro de 2006

Debruço-me sobre a sombra da morte. Pálida sombra de uma vida. Debruço-me. Antes o aperto. Não é receio. Chegará a todos. Nada há a fazer que enfrentá-la. Tomo-lhe a mão. Falo baixo. Tão baixo que é inaudível. Forço-me. Não quero que outros que não nós, nos ouçam. Afinal é a nossa despedida. Põe-me a outra mão por cima da minha que aperta a sua. Beijo-o. Como nunca tinha feito. A falta de ar. O olhar vago. Não chego a perceber se me escuta. Não importa, sei que me entende. Falo-lhe ao ouvido olhando-o nos olhos que não me olham. Como se diz que se gosta muito? Que se ama? Como se diz que nos lembraremos sempre? Que faz parte de nós. da memória, do presente. Sendo a memória um presente sempre em nós. Como se diz que o admiramos? Não sei como o disse. Disse-o. Por ele. Por mim. Pela sua vida na hora da sombra da morte. Por momentos não quis deixá-lo. Senti que a nossa vida – juntos – tinha sido tão pequena. A percepção que era demasiado tarde. O cansaço visível. A ausência de uma presença forte. Tão jocosa. A ironia de nos lembrarmos do riso na hora da morte. Era como ele vivia. É como o lembro. A irreverência. Pela revolta? A sensação de ter sido pouco amado. Não sei se o foi. É somente a minha percepção. E a tranquilidade. Apesar… Saio. Para trás, resta a penumbra do velho quarto. E a sombra da morte deitada. Estaco. Não estou ainda preparada para ir ter com os vivos. Olho-o pela última vez. Com a consciência da última vez.. O que se faz? Nada. Retém-se. Contém-se. Momentos depois avanço. Momentos antes tinha subido as escadas da Sé. Percorrido a calçada. Entro pela mão de uma criança. E com ela, sento-me nos bancos de madeira a ouvir uma oração entoada por crianças: Ave Maria cheia de graça. Eu não-crente pela mão de uma criança, peço o que me permito pedir. O não sofrimento, demasiado. Rogai por nós. O olhar da criança: senta-te aqui. Volto a sair, percorrendo as pedras antigas da calçada. Sob os olhares da Fé. É quase noite. Na sua ronda, a sombra da morte…
Transportando o som dos violinos, saio para a Rua da Vigorosa, talvez no número 770 encontre entre os rostos, um que seja o deste Bach.

sábado, 14 de outubro de 2006

Amor? aonde?

Meu amor, por onde andas?

em que caminhos nos vamos cruzar
senão nas areias quentes deste deserto
na folha reflectindo a flor
nas gotas da madrugada que ornam a janela
na espessura dos veios de uma madeira seca?

iremos olhar-nos
ou pela transparência
seremos espelhos
de sussurrantes vozes?

amor meu, serás dedos agarrando a água
e mãos alígeras como aves
e teus dons os de encantamento
em melodias de vocábulos?

Não te vejo amor de dia escuro
pois por maldição nem te procuro.
aonde estás, meu amor?

sexta-feira, 13 de outubro de 2006

No país dos conhecidos

Que este país é pequeno, demasiado pequeno (ou mesmo acanhado) já se sabe. Um sinal disso é o facto de, em determinados meios - que não são muitos - toda a gente se conhece. E se não se conhece directamente, conhece-se alguém que o conhece, ou em última instância, conhece alguém que conhece quem o conheça. Directa ou indirectamente, ou por interpostas pessoas, conhece-se sempre alguém. Esta terra como se costuma dizer, é uma aldeia. Quando se começa a privar com outra pessoa descobre-se sempre ligações: a nível profissional, por via familiar, por se ter vivido numa determinada cidade ou região, ou ter antepassados daquele lugar.
Isto tem, às vezes, a 'graça' de uma grande 'família'.
Mas, a outra face, pode também ser uma certa 'desgraça'... ser 'visto' por outras razões que não apenas... o que se é.

quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Abandonaria aqui uma imagem de mim
se viesse da minha mão.
Perdi-a no tempo.
Hoje resta-me a paixão
das palavras.
voltarei a dedilhar a tua pele, forasteira.
da chuva, escorrendo das mãos,
tragarei meu corpo,
desfeito ou ressurgido

quarta-feira, 11 de outubro de 2006

Ainda se justifica o feminismo?

Hoje (duas notícias e um filme):

"As mulheres decidem 70% dos divórcios"
"1 em cada 3 mulheres foi vítima de violência"
"Dunia", de Jocelyne Saab, realizadora libanesa (Beirute, 1948)

Não haverá uma relação entre estes três tópicos?
Uma aeronave num prédio em Nova Yorque. Num dia 11.
talvez não seja atentado. mas é coincidência.

para M.

Com um beijo.
É difícil ser sábio. Poucos o são durante a sua vida. Se o formos num determinado momento, é já muito bom. O poder antecipatório da queda, inevitável, o seu vislumbre... é um instante de sabedoria.
Também eu estive dos dois lados da barricada. Em ambos, permaneci de pé. Sem receio dos tiros. Afinal a meu lado estava a dignidade. E na tranquilidade (im)possível, sempre vi que afinal há um só caminho: civilidade.
no silêncio canto amor,
nas palavras
um sabor a fel.

terça-feira, 10 de outubro de 2006

Cão ou gato?

Sentados à mesa, já não sei a que propósito, surge a clássica questão: preferes o cão ou o gato? A resposta indicará, à boa maneira da caracterologia dos anos sessenta/setenta, a identificação em termos de personalidade. Ou a preferência em relação aos outros. Cada um que reflecta sobre si mesmo. Dos porquês. Das suas relações. Das suas anti-patias e filias.




Eu tive uma pastora-alemã, linda. - gosto sobretudo de cães pastores (guardadores), grandes e peludos, fofos. Leais, ternos, mas não lamechas. Que saibam (como os animais sentem e sabem) rosnar ao "dono"(*) se este é injusto. Ás vezes irrita-me a docilidade, ou antes, uma certa submissão dos cães - irem ao encontro quando o outro não merece.
Tenho agora uma gata. Siamesa. O mais canino dos gatos. Sempre tive gatos quando, há muito, muito tempo, vivia em casa dos meus pais. Gosto muito de gatos. Esta gata é especial (não porque é "minha", mas porque a conheço e a amo), é afectiva, meiga, arisca, amua quando eu não lhe ligo o suficiente, mas não fica ressentida, é autónoma e não me liga nenhuma quando não está para aí virada. E eu respeito esse modo de ser. Mas também ralho quando entendo que devo. Por isso, convivemos bem. E respeitamo-nos. Adoramo-nos quando é tempo de amar, estamos sós quando queremos estar sós. E falamos uma com a outra, muito fala ela!. (agora está aqui, a meu lado, dormindo)
Muita gente diz que gosta dos animais, mas no que respeita a gostarem daquele animal, com aquela "personalidade", isso é uma outra história. Dos gatos é paradigmático, à primeira vista "que fofos, que queridos", mas quando vem o primeiro arranhão, ou quando ele não vem ao bichanar, pensa-se logo "os gatos só fazem aquilo que querem", "os gatos não gostam dos donos", como se fosse um defeito ou como se fosse um sinal inequívoco da falta de afectividade dos gatos. Realçando imediatamente a diferença em relação ao cão - mais um esterótipo. Em vez de se tentar compreender, ao invés de ter a delicadeza e o respeito de tentar entender aquele ser, julga-se que se é dono. Como tal, o bicho deve corresponder / obedecer, em termos comportamentais e de personalidade, aos desejos do seu "dono".
Há gente que não merece os seres que tem a seu lado. Gosta-se da aparência do bicho, ou daquilo que ele significa para si mesmo. Não amando, na realidade, o que eles são... Não amando para além de si próprio.

(*) Esta palavra 'dono' é repugnante!!!!

segunda-feira, 9 de outubro de 2006

Nunca vi a escrita. a insuflada pelo
demiurgo. Também não o conheci. Nunca
se apresentou nem de fraque ou de
farrapos. Alguém, descendente de Platão
impingiu-nos que poesia era amor
ou vice-versa, pouco importa. Nada
disto é imortal. Talvez porque
já não há - nem nunca houve - começos.
Até mesmo aquele que teve todos os nomes
no mundo, nada criou. Agarrou na terra e no
ar, no fogo e na água, agitou, deitou
uns pózinhos perlimpimpim e eis-nos!
Nós, para além de umas quantas poeiras que
continuam a girar - feitas baratas tontas -
pelo universo a-fora, uns sujeitos com
formato de gente a pensar que
o somos
feitos de amor e poesia.
um rectângulo branco como uma manhã
de nevoeiro. Mal conservado pelo tempo
pelas ervas daninhas corroentes
nem sobrevive o desejo de uma inscrição.
não aspira à mais espantosa tela
do mundo. Ao poema que cale o que geme.
A asma. uma boca
entre-aberta.
a mão, a mão que não se sente, acena
esboçando o adeus.

domingo, 8 de outubro de 2006

Quando algo a que se pode chamar paz nos envolve como um véu,
as palavras - inúteis -,
o pensamento - inessencial -
volatilizam-se.



Apenas estamos.
Contemplando(-nos).

sábado, 7 de outubro de 2006

Já pensei com quem sabia pensar.
Já abracei quem me abraçava,
chorei e sorri.
Já olhei até ao fundo do olhar.
Amar, daquele que se faz
sem (me) ter
memória ou futuro
nunca o fiz.
Dual
entre espírito e alma.
O corpo…
esse?
Está encerrado para balanço.
A planta carnívora fecha-se
ao toque. De um insecto
ou de espada sangrenta.
Devora o ente estranho.
Na ausência, é o seu cerne,
o alimento.

sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Dos Lugares onde se sonha...

Quando um amigo nos oferece esta canção

We'll meet again,
Don't know where,
Don't know when,
But I know
We'll meet again
Some sunny day.

Keep smiling through
Just like you
Always do
Till the blue skies
Drive the dark clouds
Far away.

So will you please
Say hello
To the folks
That I know
Tell them,
I won't be long.

They'll be happy to know
That as you saw me go
I was singing this song.

(espantosamente cantada por Vera Lynn)


Quando um amigo nos diz

"desejo, um dia, saber que és feliz"


Embarga-se-me a voz, ficando o sentir

Neste mundo, há pessoas que
mesmo na sombra, nunca esqueceremos

Sempre. Com um sorriso.

quinta-feira, 5 de outubro de 2006

A lei dos homens em nome de deus (ou da verdade)

pela inquisição
de santa a bruxa

pela inquirição
de pura a puta

quarta-feira, 4 de outubro de 2006

?

Perguntar de nada serve. Perguntar é apenas ouvir a resposta que já temos em nós.
Na exigência de resposta, ouve-se o silêncio. Ou palavras in.significantes.
No amor, não há perguntas.
Estas são da esfera do desamor. O seu princípio. O seu fim.

No amor. O silêncio do olhar.

Transitória mudez

Ódio!
Nojo Repulsa
Num ímpeto, oferecer o corpo ao mais vil dos homens
para me expurgar de ti.




Sobre os escombros de Hera, erguem-se as asas de Fénix.

terça-feira, 3 de outubro de 2006

Nome esboçado

Acreditei que era teu
o nome que pronunciava

- Fugidia voz trazida pela alegria -

Chamava-te meu amor como quem apetece
desejo

Agora sei que não eras tu

Soletro-te… silêncio

segunda-feira, 2 de outubro de 2006

Pode uma pessoa querer ser amada de determinada maneira?
Pode-se exigir que nos amem de um determinado modo?

Queremos que nos amem, sim. Mas não é apenas isso que se deseja; muitas vezes deseja-se não apenas a "quantidade", ou melhor, o estado de amar, mas a sua "qualidade", a forma de amar.
"- Podes dizer que me amas, mas fizeste aquilo que revela que não amas.
- Alguém que ama, não faz isso"
Quantas vezes já vimos, lemos, ouvimos este tipo de afirmação?

Todos nós queremos ser amados. Mas quantos não quererão isso a qualquer preço? isto é, alguns fazem tudo para se sentirem amados (o que é o mesmo que dizer, aprovados, aceites, ou num caso extremo, sentirem que só são Pessoas se forem amados).

Outros têm um especial "jeito" para rejeitar qualquer amor. Qualquer manifestação amorosa é, para eles, e ambiguamente, um modo de testar o amor do outro. A sua rejeição aparente não é mais do que a afirmação de que se o outro apesar disso, de todas as tentativas de afastamento para o desamar, o continuarem a amar, então talvez o amem mesmo. Este é um comportamento, manipulatório relativamente ao outro, que nunca se vai esgotar porque é necessário sempre mais e mais... É o sujeito amado que exige constantes e incansáveis provas de amor.

Se este último padrão é obviamente uma manipulação do sentimento do outro, o primeiro não deixa de o ser também. Porquê? Porque normamente vem associado a afirmações: "Eu até não peço nada", "eu fiz isso por ti, não por mim". Porque nunca o amor do outro pode, por si só, tornar-lo pessoa. Mas também porque está associado a uma exigência inversa: "Eu que te dei tantas provas de amor... (e tu retribuis-me dessa maneira)"
Ou indo mais além, o que quer ser amado vai-se colocando a ele próprio numa posição de subalternidade, de "indignidade", de dependência vital, que o amor do outro pode facilmente tornar-se pena. Pena e não Compaixão (isto é outra coisa). E quando há pena, quando a piedade toma conta da relação amorosa, esta deixa de o ser, para ser um outro tipo de relação.

Nestes dois modos de amar, ou de querer ser amado, há uma constante: a falta de liberdade. A coerção, a opressão do sentir de um relativamente ao outro.

Estes são dois casos típicos, paradigmáticos, mas que são mais comuns (oh, infelizmente são!) do que aparentemente se pensa.
Na realidade, há mais variações destes "jogos de poder", a que desgraçadamente chamamos de relações, do que gostamos de admitir ( e muito menos quando se passa connosco próprios).


O amor é uma necessidade humana, sim, mas talvez mais do que isso. É, talvez, a maior das condições humanas.

Nota a posterior: Curiosamente ao reler, vi que algumas destas considerações podem aplicar-se não sómente àquilo a que se convenciona chamar de relação amorosa entre duas pessoas, mas a muitas relações que as pessoas têm com os outros, e até mesmo com coisas...

domingo, 1 de outubro de 2006

Soubesse eu escrever aqui sem alma, era o que faria. Assim não me identificavam, não me sentiam. Se tivesse humor, daquele bem rasca, melhor ainda, porque ririam e nem reparavam que aqui estou.
Eu até não existo.
Como dar sem ser notada? Notada por aqueles que não prestam? É espaço de silêncio, mas também de comunicação. Pode até não haver escuta (e não quero ser injusta, ainda ontem... ainda ao longo destes quase três anos... recebi palavras como aquelas da Meg), mas exprimir, escrever, é-me essencial como o ar, como a água.
O olhar dos outros é-me tão necessário como me incomoda. Incomoda naquele sentido da prova, como se eu estivesse a provar algo, a eles, a mim. E depois há aquele olhar... não quero pensar nisso - retirei os dois post de há pouco, não merece. Se vir viu, vou tentar não pensar. Anular aquela existência.
Sinto como se tivesse estado a oferecer uma rosa (podia não ser assim tão bonita, mas era sentida, era eu), e alguém a tivesse agarrado à bruta, deitado para o chão, e no furor de ir à procura de outras flores que houvesse no meu jardim, a tivesse pisado. Uma vez entrado, olhou para as minhas flores, e viu pedras ou cactos. Não eram! podiam não ser bonitas, visosas, mas eram as minhas flores, era o meu jardim. Jardim violado.