quarta-feira, 31 de março de 2004

gotas de cloreto de sódio




hoje, vi pela janela, aquela que tem vista para o mundo. vi mortes, vi corpos despedaçados, carbonizados, vi gritos de gentes torturadas, aterrorizadas, vi enganos, vi ilusões, vi lágrimas e dor, vi... para não ver...

aurora

noite nua.

longe o mar, da lua.
entre eles, um barco sem rumo
habitado.
na distância, o reflexo
não é lua
não é água
beijo líquido
de luar.

terça-feira, 30 de março de 2004

outros… lugares efémeros... bem mais eternos


Sandro Botticelli, O Nascimento de Vénus, detalhe, 1485,
Têmpera sobre Tela, 172,5 x 278,5 cm, Galeria dos Uffizi, Florença


O fecundo regato, surgido de límpida fonte,
Envolve, em todo o redor, o fértil espaço.
A terra de Vénus, a verdade que se diga, é
Lugar efémero de alegria e encanto:
Toda solteira ou casada lá nascida,
É, pelo mundo afora, sem graça igual:
E Vénus deseja, até soar sua derradeira hora,
Que o Amor aqueça seus seios, jovens e velhos.


Ludovico Ariosto (1474 - 1533), ORLANDO FURIOSO, Canto CXXXIX


L. Ariosto (Reggio Emilia, 1474 - Ferrara, 1533), poeta italiano, “desde a sua primeira edição, em 1516, esta obra-prima da poesia italiana tornou-se a preferida tanto de famosos, como Cervantes, Galileu e Voltaire, quanto de gente anónima”. “Surpreende-nos com a lucidez do olhar que descobre, com um sorriso, que razão e loucura são inseparáveis, mesmo em figuras exemplares da tradição medieval. É o caso do guerreiro Orlando que, por amor de Angélica, bela princesa oriental, deixa o exército cristão de Carlos Magno e começa a busca que o levará à loucura.” Em “cada história confronta um castelo encantado, metáfora da decepção e do desejo. Estes dois aspectos estão ligados entre si - isto é - cada personagem é atraído ao castelo porque pensa encontrar, ali, o que mais deseja, mas engana-se (trai-se pelo desejo), descobrindo que naquele lugar não há nada do que ansiava.” Também “para Ghirardi, em Ariosto a poesia é vista como espaço privilegiado do diálogo entre razão e loucura. (…) Ariosto, diante da emergência das teorizações retóricas, defende a autonomia da criação artística”.

Foi este “poeta italiano quem deu o nome de “Fontana Amorosa” à fonte natural na Península de Akamas, no Chipre, onde Afrodite (ou Vénus) costumava ir beber” e, segundo a lenda, “tomar um gole de água da fonte e, mesmo nos dias de hoje, o amor poderá materializar-se”.

Antonio Vivaldi compôs uma opera, estreada em 1727, considerada sua melhor incursão neste género musical, baseada no poema homónimo, ORLANDO FURIOSO.

segunda-feira, 29 de março de 2004

hora de verão, hora de primavera

mudança de hora
os dias são luz, chama total
as noites, súbito esplendor
renasço pelo sol nascente
em desejo, sorriso ao calor
hora de mudança

domingo, 28 de março de 2004

hoje pintei o sol
à chuva
dancei cantando
e ele veio, quente.


Turner

sabor amargo

chama-me o som da cascata
fonte de águas
límpidas e puras
olho-as, em mim, transparentes
quase reflexo, miragem,
num toque leve
abrem-se círculos concêntricos
como repto para as penetrar,
entro, mergulho, imerso,
banho-me, ofereço-me,
completa
bebo-as, bebem-me,
quase saciada,
no saborear -a-final
um travo amargo.
não são límpidas?
não são puras?
ou apenas reflexo - ânsia do meu olhar?

na nudez molhada
- inesperada –
não cubro
destapo

rasgo.

sábado, 27 de março de 2004

música branca de bach

Tarde de chuva. Começo a escrever. “todos os sonhos são perigosos”. Algo que li algures. Não interessa, não importa hoje. Rejeito não sonhos, mas considerações sobre eles. Levanto-me. Quero algo que ainda não sei bem o quê. Ponho no leitor um CD. Faço pequenos gestos de arrumações, limpezas, calmamente, saboreio-os, na escuta desatenta mas penetrante da música, e o som invade silenciosamente este espaço de que eu cuido. Concertos para violino. Estou. Faço. Aprecio. No silêncio da música. Ouvindo os meus ecos. Sentindo lá fora uma tarde de um entardecer prematuro, de penumbras e sombras. Rejeito, hoje não consigo lidar com sentimentos adivinhados, obscurecidos como a tarde de chuva. Procuro… Sento-me com os meus livros. Outros concertos, seis. Já não os ouvia há tanto, tanto tempo. Não por não os amar, pelo contrário. Por vezes temos de nos afastar das coisas que amamos quando isso comporta sofrimento, ou está associado a demasiada dor. Foi assim com estes concertos. Lembro os tempos no sótão de casa de meus pais, num leitor de LP´s roufenho… Estes Cd´s foram dos primeiros que comprei, também há muito tempo. A sua escuta penetra demasiado em mim, no meu estar solitário. Leva-me a um tempo só meu, o tempo desta música sou eu. vivo neste som algo que desencadeia um parte que não é vivível, partilhável com os outros. todo o meu interior se move. as palavras são inúteis. há este fluir. este brotar. este sentir.
E nos gestos, nas letras impressas, no fluido silencioso deste abraço harmonioso encontro… a paz, o respirar calmo, a destrinça dos sentimentos emaranhados, a mudez da simplicidade que permite todas as coisas complexas, a delicadeza de emoções claras, o cumular de todos os sons, música branca.

sexta-feira, 26 de março de 2004

estrada em construção…



- Aquela rapariga, aí atrás, deixou cair o açúcar na mesa.
- Diz?!
- Na mesa por detrás de ti, está uma rapariga que com a conversa distraiu-se e em vez de deitar o pacote no café, despejou-o na mesa.
Ela sorri, e faz disfarçadamente o gesto, mais ou menos cómico, de despejar o pacote de açúcar ao lado. Levanta as sobrancelhas, sorrindo e pergunta:
- Assim? - Como se quisesse confirmar os gestos que não chegou a ver.
Sorriem os dois, continuando a falar. Disto e daquilo, pondo a conversa em dia. Tinha recebido o telefonema dele à saída do trabalho, já noite. Ele nem se lembrava que naquele dia da semana ela costumava ficar até mais tarde. Telefona-lhe em cima da hora de jantar. Gostava de a ver. Estava em Lisboa. Mais uma vez de passagem.
Acabam o lanche. Não, não lhe apetecia jantar, não nesse dia, não com ele. Comem qualquer coisa, não era o que importa. É olhar, ver, sentir-se depois daquele tempo todo. Olha-o nos olhos, escuros, pequenos, algumas rugas de expressão, boca forte, sorriso aberto. bonito? pensa. Já não, não tanto, mas o rosto é o mesmo, aparentemente igual ao que era, ao que tinha sido. lembra-se do ditado, ‘quem feio, ama… “ e sorri. Estão conversando e aquele sorriso nem se desenquadra. É um sorriso de ternura, pelo passado, pelo presente. pelos sentires que se delineiam no percurso de cada um, pelos encontros que permanecem mesmo longe, mesmo diferentes, pelo significado que se vai alterando, construindo.
- Vamos? Saem para o frio, ela aconchega-se no casaco, e esquece-se, nem sequer se lembra, de uma outra noite em que também estava frio, em que também se aconchegou no casaco. Caminham lado a lado até ao carro. Ela fala-lhe no cansaço que sente:
- … já não consigo ficar até tarde, então hoje… só se fosse algo muito especial…
- Desculpa, não percebi. - O tom de voz tinha sido baixo, mas se calhar não tinha sido isso… se calhar não estava à espera ou… tentava perceber o verdadeiro sentido daquela frase. Ela repete, mais alto, mais convictamente. Entram no carro, e sente-se um movimento de aproximação, um gesto encoberto com o de pôr o cinto, ela já está a pôr a marcha a trás. Arranca, sem dar tempo. O diálogo continua fluido, como tantas outras vezes, por um lado até mais, um pouco mais descontraído, menos expectante. A distância é curta. Ele, nota-a,
- Estávamos perto?! Nunca mais tinha vindo a Lisboa, desde..
- Nem eu às tuas bandas… mas quando for…
- Também esperava que se tivesses ido, me dissesses alguma coisa… e que digas…
- Eu digo… com antecedência…quando for… - di-lo sorrindo, espicaçando-o, ou talvez mostrando ironicamente um certo desagrado com situações, outras.
- Mas só resolvi à última da hora… - Justifica-se, sentindo-se um pouco atingido. Um sorriso mútuo apaga qualquer mal entendido, talvez agora… talvez nunca tenha havido…
Pára o carro um pouco antes da porta do hotel. Olham-se. Começam a despedir-se. Um gesto de aproximação. Ela corresponde suavemente. As mãos encontram-se, acariciam-se, tocam-se meigamente, diferentemente, mais directamente, mais claramente. As intenções são definidas. Eram-no, com uma outra forma. Dão um beijo na face, prolongado. Mais uma frase de despedida. Mais um breve beijo, outro. Uma frase inacabada, “esses teus lábios…”, um olhar. um adeus de olhar, sorrisos duplos, não idênticos, aparentemente idênticos, um deles prolonga-se, talvez no olhar que acompanha o carro. O outro sorriso alonga-se pela rua, pela estrada em construção…

quinta-feira, 25 de março de 2004

quarto com vista sobre...



Acordo antes do nascer do sol... neste admirável assombro rosáceo, lilás, indigo… num desejo de despontar, de renascer, de viver este dia, como se fosse único. vontade de fazer coisas, minhas, e não apenas. paixão de sentir no diminuto, a grandeza de tudo. sinto-me feliz. modo bom de festejar mais um mês, aqui. de partilhar sorrisos de todas as cores... e
a luz matinal...

quarta-feira, 24 de março de 2004

será tarde?

subo uma, duas, três, quatro escadas rolantes, como no início deste lugar, subo mais um lance de degraus em cimento, e estou na rua onde Pessoa com outras Pessoas estão sentadas, como estátuas estáticas ou em movimento agitado. olho, sem estar bem aqui, olharei mais tarde como já olhei, e verei mil coisas novas, rostos, detalhes, sons, luzes, pedras. percorro a rua dos trilhos paralelos, daqueles que nunca se unem, nem no infinito… onde está ele? o sol já esteve a pique, sem sombras, mas falta tempo para anoitecer, para uma outra noite escura, clara ou negra? desço aquelas escadas de corrimão de ferro forjado, representado, até aos arcos que se tornam minha cobertura. sigo, escutando ruídos de esquina em auto-rádios que passam rentes. O empedrado da rua… e do largo. Naquele banco sento-me, outra vez, mais uma vez sentada. olho para o convento claro, de pano largo, janelas estreitas, para a árvore rodeada por outro assento, estará já em flor? estarão lá outras gentes? olho para o portão de ferro que guarda o rio longínquo onde poisam os barcos e navios que irão zarpar em primeiras ou derradeiras jornadas. sentada parece que espero… espero que aquele largo… sentada aguardo apenas o ponteiro dos minutos avançar. sentada, olho o céu azul da espera, ou esperança azul? sentada pareço estátua como a outra, as outras lá mais acima. talvez tome também um café… terei de me levantar, entrar naquele edifício de paredes largas de um dos lados do largo. correr com a dor naquele corredor, descer mais umas escadas… talvez fique aqui ao sol mais um pouco… parecendo esperar… estou sentada aqui, aqui, mas não estou. afinal será só esta tarde, quando não for criança nem velha, a tarde. será esta tarde? será tarde?

terça-feira, 23 de março de 2004

   I


nasço da tristeza
rindo-me de mim.
ironia.


II

o querer é vão
quando o rio beija
as suas margens
o rio segue

refúgio

no escuro,
pálido ou negro?
de suave embalo,
de bruscos anseios?
gesto doce menino,
vento agreste tormenta?
sem réstias de lágrimas,
tristeza trilhada,
regresso à caverna nocturna
de silêncio integral

segunda-feira, 22 de março de 2004

Vingança na raiva

ligeiro sono indesejado
hirto pesadelo agitado
ameaça enfrentada
agarro, rebato, arraso,
prendo, amasso,
os braços agitam-se
espanca o ar
bate agora, na indiferença
no desprezo,
na raiva.
raiva insuspeita, camuflada,
sai, solta-se, revela-se
fazendo engolir garganta abaixo
bocados de vara amputados,
na boca já saturada, mais
e mais, continua a falando
de boca cheia nunca calando
gesticulando. preso, imóvel, amordaçado,
espanca, fala, profere, viola,
açaimado, o ruído monstro saía,
saía e a raiva vingava (-se).

domingo, 21 de março de 2004

na água não submergem questões, irrompem. as respostas, diluem-se num sentir concreto, quase definido.

sábado, 20 de março de 2004

“A rosa, desde o fim da antiguidade carregada de significados positivos e fortes (como a flor nascida do sangue vertido por Adónis e dedicado a Afrodite), é na literatura medieval religiosa um símbolo de beleza, renascimento e virgindade, enquanto nas obras “laicas” significa amor físico (por exemplo no Roman de la Rose) e alude às partes íntimas do corpo feminino. Por causa da lenda em que se atribui a esta flor a capacidade de atenuar os efeitos da embriaguez, a rosa torna-se também símbolo da discrição: a expressão latina rosa significa “sob o segredo do silêncio”.
in "A estética da idade média", F. B. Brocchieri


cadência raiada de cristal quente

devia talvez sair do carro, ou já ter saído, quando o estacionei, nesta rua de Lisboa. ruas tão desertas, inabitualmente vazias. é sábado de manhã. e o sol enche tudo, dá uma outra luminosidade às fachadas, ao asfalto, aos troncos texturados das árvores, ao empedrado dos passeios, com as suas sombras negras como figuras, deitadas, não estáticas. E este azul… indescritível… e escuto em melodia ‘parece que te ouço rir’… parece que hoje tudo o que tem nome, ri. e talvez só haja aquilo que é nomeável. senão, existirá?

sinto o desejo de prolongar todos os momentos do agora. como se hoje, hoje como jamais, fossem únicos, ímpares, exclusivos, absolutos. o calor, a cor construída, misturada, conjugada, a vivacidade dos tons, juntar, misturar, mexer, remexer, confundir, assombrar, pincelar, traçar com uma desintenção intencional… depois a música, quente, forte, arrebatada, quase violenta, de súbito a suavidade de um violino, e de novo o ímpeto, o ardor, a força colérica de todos os timbres, de todos os corpos sonoros… e outra vez o calor, e este escrever ao sol, como estufa natural translúcida, cadência raiada de cristal

sexta-feira, 19 de março de 2004

riscos indeléveis

já não consigo ver a lua, daqui. não importa. sinto-a, sinto-a em mim, sinto-a na pele dos seres invisíveis que amo, sinto-a bonita, escondida e visível, misteriosa, oculta e revelada, em lágrima de sorriso brilhante. como no segredo que me contaram, baixinho, ternamente. sinto o seu halo que por mim desliza, acaricia, envolvendo meu corpo-alma, penetrando minha alma-corpo.
não, não quero apenas tocar... por vezes quero, tocar ao de leve, afagar de olhar, apenas. outras quero agarrar, sentir sofregamente, apalpar em comprovação do ser, experimentar uma qualquer fusão, liquescendo-me nesse todo tão táctil. e nestes jeitos diferentes de ter, de traçar, riscar(-me).
"escrever é fazer doer o nosso ser como nunca ninguém ousou fazer"

S. Beckett

quinta-feira, 18 de março de 2004

quarta-feira, 17 de março de 2004

ilusão translúcida

Neste entardecer ténue, aguardo a noite de transparência. Peço um silêncio que envolva a inquietação. O desassossego de um sonho no limiar de um gesto, enquanto este não se desenha em mãos. Talvez acredite naquele secreto segredo… talvez seja a única… talvez seja só…
Contemplo o livro trancado. impresso. sem palavras. preso. encanto furtivo. Dentro, um espaço oculto, prata-rósea, sem metal… só um fugidio clarão contínuo. lugar de luminosidade opaca de um transparente sentir. inexplorado.
Numa intenção de encontrar a chave, ou não, silêncio decifrado, pergunto. ouço ecos de mim, impuros, inautênticos, colados como cartazes rasgados, desgastados. temores insensatos. meus, exteriores a mim.
Talvez esteja já aberto, talvez seja ilusão translúcida.

terça-feira, 16 de março de 2004

indiferença

O rio corre indiferente… alheio ao que sinto, ao que penso…
porque haveria de ser diferente?
só eu quero ser,
rio e mar e ondas
sol e lua
fogueira e flecha
orvalho rochedo planície
deusa de infinitos.
o rio é apenas,
tanto,
rio.



Não, hoje não é verdade, o mito do bater de asas da borboleta, algures no mundo.
Só para mim.
Só eu secarei se os rios deixarem de ser rios
o rio corre indiferente.

segunda-feira, 15 de março de 2004

borboleta quase visível

tráfego intenso, em pára-arranca, rua intensa em ruído sonoro, em estrupido visual. foi no inverno, podia ter sido hoje. uma borboleta poisa no metal por entre aquele caos. única, graciosa, ser estranho naquele meio de estranhezas outras. poisa, demora-se… e voa frágil, levada pela brisa ténue, como alma germinal indagando pela claridade. atraída pela luz da lucerna, ofusca o seu destino, numa traição pelo seu primeiro olhar, invisível, numa escuridão repentina, num cegar irreflectido. e as noites e as manhãs sucedem-se na solidão não olvidada. até um dia…

domingo, 14 de março de 2004

passagens no sentir

uma flor recebida. um escrever íntimo incompleto. uma ave pousada no parapeito da janela. duas chegadas. uma partida. uma tela acabada - talvez -, outra esboçada. palavras límpidas vindas da bruma. gestos diários com histórias sem rotinas. curtos olhares que se prolongam na linha de um qualquer horizonte. sombras que se esvaem sob um véu não dissipado. uma pedra do deserto que cai no chão. ramos podados no alvor de uma primavera. passagens no sentir-corpo.

sexta-feira, 12 de março de 2004

lua interdita

naquela vidraça virada para o rio, escorre líquido, o tempo. os dias ou noites do que não foi, talvez ainda ou, quem sabe, nunca. somente uma sombra em gestos difusos, por vezes revoltos. de um esquecimento sentido ausência, e inesperadamente clareado presença. desfecho transmutado em interlúdio. encerro-me em dúvidas primordiais, impenetráveis. é apenas um sentir, questiono. questiono-me. por detrás da vidraça ou do tempo. afago o vento, não com as mãos. com o olhar. azul. como o do rio. como a da matéria que aparta ou aproxima. que azul? azuis de tonalidades oníricas, qual luz imensa… ou lua interdita…

quinta-feira, 11 de março de 2004

Ay!

El grito deja en el viento
una sombra de ciprés.

(Dejadme en este campo,
llorando.)

Todo se ha roto en el mundo.
No queda más que el silencio.

(Dejadme en este campo,
llorando.)

El horizonte sin luz
está mordido de hogueras.

(Ya os he dicho que me dejá is
en este campo,
llorando.)

Frederico Garcia Lorca

o regresso...

... dos filhos pródigos... azul cobalto, universos desfeitos

madrid

Acorda sob o horror. até quando? como é possível? por que sendas deambula a nossa humanidade de Ser humano?

quarta-feira, 10 de março de 2004

feitiço ou ...

Indiferente ao que por vezes quero, e há momentos de o querer muito, ou no fundo nunca, não me posso impedir de sonhar, de imaginar, de me inventar, de me acrescentar com algo que não é meu mas que no âmago sou eu. Ou que serei numa manhã. Sendo um tal sonho que me sonho em verdade ou em esquecimento.
Em onda - desejo que se dirige para a areia, por vezes grande e impetuosa, outras quase imperceptível, só visiva pela espuma leve e branca que a circunda, e subitamente, surge desmedida, profunda, larga, aproximando-se insaciável, serena e impetuosa, como se o seu caminho fosse único, como se ali se jogasse tudo, a sua existência, o seu fim, o sentido de ser um pedaço de mar ou um imenso todo de gotas.
O desejo do sonho em sonho de desejo vem inevitável, e lanço-me ao seu encontro, julgando que o abismo nada mais é do que uma bruma sublime que envolve os vultos de Friedrich. Como se escutasse um murmúrio invocado pelas lonjuras do mar, enfeitiçada, voo até…


terça-feira, 9 de março de 2004

Raízes do vento

Leio palavras ou escrevo-as, sinto-as em mim sem formas nem letras. Amálgama de pensamentos sentidos. Por vezes parecem-me minhas, outras, de alguém que queria existir ou sentir assim, num sentimento de desrealidade, como se durante o dia caísse subitamente a noite e, outra dimensão subsistisse. Sinto aquilo ao mesmo tempo que o seu contrário, num conflito que emoções que não se chocam, antes se harmonizam de um modo estranho. Estranho? Talvez não, afinal foi sempre um pouco assim. Um arco-íris surge sempre do sol e da chuva. Efémero na sua visibilidade. Tão fugaz que permanece, que é, apesar da sua imaterialidade. Toda a emoção é incerta, sem lugar nem tempo, qual imagem que passeia sob o nosso olhar. Peregrina. Numa busca do vento que a leva. Que quase tudo leva. Numa vertigem da memória-presente. Mas restam na terra, as raízes.

E de Repente é Noite

Todos estão sós no coração da terra,
atravessados por um raio de sol:
e de repente é noite.


Salvatore Quasimodo

domingo, 7 de março de 2004

Momentos de prazer num domingo de Março

Acordar mais tarde, saboreando o tempo com tempo para estar, apenas.
Ir tomar café no café quase vazio ritualizando prolongadamente aquele ritual habitual.
Almoço em família numa casa onde já não ia há muito. O campo, os sons dos pássaros, o burburinho das crianças, a partilha de tarefas, o estar e conversar, apenas. O rever, conhecer dois animais, dois cães grandes, lindos, afectuosos (apesar da fama de um deles), dois amigos para sempre. Lembrei-me do meu (minha)…
A estrada sinuosa, condução calma, eu e os meus ‘botões’. E o sol.
O estar com os outros. O entrar em casa, numa solidão boa.
O acabar de ler aquele livro. Outras leituras. Alguma escrita. Um telefonema. Mais apontamentos. Reflexões.
A imersão numa água quente, aromática, relaxante, e ficar ali, sem tempo, muito tempo.
O escrever aqui, e ali, antes, para alguém que lê, ou talvez não.
Um domingo de Março… quase primavera… domingo de pequenos momentos (in)vulgares.

sábado, 6 de março de 2004

Melodia suspensa

num eco sem muros,
nem espelho
ou fugas.
Detém-se em corpo
inteiro, infinito,
respiração tensa
e nua.
Espera oculta
de um beijo desejo.

sexta-feira, 5 de março de 2004



Nem flores, nem folhas verdes

Os seus olhares encontraram-se,
pareciam tocar-se.

Nem lágrimas ou tempestade.

Porque vieram aqui?
Porque lhes ensinaram o caminho deste lugar?

Indiferentes à noite que
desce da montanha.


João Miguel Fernandes Jorge,
Um Nome Distante

quinta-feira, 4 de março de 2004

quarto com vista sobre...



o movimento das nuvens revoltas. A agitação que torna por vezes o claro em escuro, por vezes o contrário. Ou ainda coexistem, encontrando-se por breves instantes num qualquer lugar. Para, em seguida, se desencontrarem, num mover contínuo, assumindo formas diversas, tonalidades outras, percursos desconformes ou reencontrados, num devir dançante … qual sedução, qual encantamento, qual tentação. Seria jogo, não fora os movimentos naturais que os tornam entes de um qualquer pulsar. De um essencial ímpeto de sobrevivência ou de perenidade.

terça-feira, 2 de março de 2004

sempre

Outono. Sol frio. O verde do jardim rodeia-me, mas sinto a aridez do banco de pedra-cimento em que estou sentada. “cai uma folha mesmo à minha frente. Pareço eu, sinto-a como eu, basta uma brisa, leve, e arranca-me à vida. Tento prender-me a mim própria. Porque mais não tenho. Ou pouco mais tenho. O lugar público, incómodo e cómodo porque evita o desabar. E o dia azul, quente cá dentro, como está cá fora, quando virá?” Numa serenidade aparente, sorrio sem alma, sorrio para não chorar, porque quase me desfaço por dentro. Sei que ao chegar a casa, na solidão, desabarei. Tenho medo. Adio. Circulo. Passo. Ando. Saio e entro. Tentando-me agarrar a esta imagem de mim que dou aos outros. Contenho-me. Sei que não por muito tempo. Quase a esgotar-se. Venho cá fora. E estás aí. Por acaso. Ou talvez não. Precisava hoje de ti. Amigo. Nem sabia que precisava tanto de ti. E estás lá. E saímos passado um pouco. E agarras muito do que desabaria dali a nada. E pouco importa que me vejam as lágrimas correndo no teu ombro. Acho que nunca chorei tão visivelmente. E estavas lá para as acalentar, para me ajudar a acreditar de novo em mim. E nesse fim de tarde de Outubro, fizeste-me sorrir quando eu tanto precisava. Mandei-te uma mensagem depois de nos despedirmos: amigo é… estar no lugar certo, no momento certo… (por acaso… ou talvez não). Respondeste-me em seguida. E guardo isso preciosamente. Algo que te reenvio hoje: Beijos. Sempre.