terça-feira, 25 de dezembro de 2007

4

4 anos depois. quatro.
comigo. e este lugar. sendo com, pelos outros. atravessando passo após passo. sempre em aberto - de olhos, de coração abertos - caminhando.... caminhando.... caminhando...
(...por caminhos de asas...)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

gosto de viver. acho que só gosto de viver enquanto gostar de ser eu, enquanto gostar de caminhar lentamente absorvendo a vida. olhando, olhando, olhando muito. como se saboreasse cada molécula do ar que me envolve. quando não gostar, quando não gostei, e deixei de ser eu. quando não gostar, deixarei de viver, mesmo que essas moléculas continuem envolvendo o corpo que digo meu.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

um banco de jardim. uma chuva de folhas de outono. um pássaro esvoaçante. em mim.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

pequenos detalhes

É nos detalhes que muitas vezes se encontram diferenças fundamentais. A escolha das palavras, o vocabulário que nós é próprio, distingue-nos, acrescenta-nos ou substrai-nos de outros mundos. Vem isto a propósito da escuta de uma palavra - e como estas nos podem afectar! -. Ainda se ouviu baixinho 'mereces...', logo negado e substituído por um 'és digna...' Uma quase insignificante e mínima diferença. E se no dicionário aparecem como sinónimos, não o são. Porque a segunda é qualidade (característica) da pessoa, enquanto a primeira está dependente de uma atribuição externa ou de um julgamento. E isso... isso... quem é o outro para avaliar?!

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

eco do silêncio

entro
dentro do silêncio

como uma câmpanula
como um ovo

(já escutaram os ecos do silêncio?)

como um refúgio

como braços abertos
fechados em torno de mim

o silêncio
dentro de mim

este silêncio não é ausência
do que vem do exterior

pois se ouço

as ondas baterem levemente no cais
o ancinho varrendo folhas amarelas de outono
o comboio rolando nos carris
o pousar de gaivota na amurada
o esvoaçar das penas de um gaio azul
as vozes de homens que passam
o breve assobio de ave despercebida

este não é o silêncio da terra
que se move e agita
abafada pelo ronco de um automóvel

este é o silêncio do mundo
do mundo onde já só falo
com o eco deste silêncio

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

sobre o caminho das folhas de outono, escuto aqueles passos.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

os dias passam e vou-me reencontrando ocasionalmente comigo.
nem no silêncio nem na multidão deixo de caminhar.
umas vezes reconheço-me e sorrio. noutras deparo-me e choro.
outras ainda confundo-me com as gentes que escuto e olho.
sou elas? porque não?

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Lugares

Há poucas coisas de que tenho saudades na minha vida. De pouco adiantaria ter, já que nada se repete, nada volta ao mesmo lugar, às mesmas circunstâncias. Há coisas que guardo no coração, coisas intocáveis, como um sorriso precisoso de um momento único, e nessa raridade está a essência em forma e razão. Há coisas de que tenho saudades mas não queriam que voltassem, paradoxalmente. Não serão então saudades, será outra palavra, outro sentimento qualquer.
É dos lugares que tenho mais saudades, dos lugares que percorri, que me percorreram. Lugares onde cresci, que me viram tornar-me mulher - chorar, rir e dançar -. Contam-se pelos dedos de uma mão esses lugares vividos - de vida -. Nem sempre quero lá estar, nem para sempre me ausentar. Lugares onde o estar se tornou ser. Este é um deles. Tão lugar como uma praia. ou uma ilha. nossa.
voltarei.

sábado, 15 de setembro de 2007

ver o mar

nem sempre vemos
apenas o que nos mostram
muitas vezes ficamos aquém.. ou vamos além do olhar

brilhante
como o sol
incidindo nas aguas
ou o luar

brilhante
como o mar
a cor do mar

das cores do mar

o mar não tem apenas uma cor
é multiplo
e uno
azul verde cinzento
assim são as cores...

brilhante para quem vê
inquieto na sua substância, no que provoca

nasci na proa de uma embarcação

em que mar?em que águas? onde o mar é bravo e frio e onde há dunas e camarinhas
com uma vela latina
o barco mais bonito do mundo
(sabe o que são camarinhas?)

pérolas brancas das dunas

sou do mar e da praia e da terra e preciso de ar

e com os olhos que parecem o farol
na minha terra dantes, os bois lavravam o mar.
agora são os tractores
e um dia nem tractores haverá e não será nesse dia que devolveremos o mar ao mar

que seremos nós? que será de nós?

sem o mar

nada sei do futuro
não existe futuro
só as nossas expectativas presentes
irreais
o futuro é uma projecção limitada do nosso presente

escreve...
como quem passa tempo a ver o mar

quando olha o mar.... o que vê? uma onda e outra. como será a próxima? nunca saberá, até ao momento em que a vê. e o passado sempre pelos olhos do presente e em cada presente muda o passado
morreu na praia..........queremos lembrar aquela onda que já vimos...não lembramos, apenas temos a memória modificada por aquelas que agora passam
as ondas nunca morrem...
transformam-se em ondas presentes... e nas que talvez virão... maiores? menores? ou apenas penetram mar dentro e diluem-se

havemos de ir ao mar
havemos de ir ao mar das águas

(temos de morrer de alguma forma... não haveria melhor que no mar)

e quando se sai das aguas, molhada, o sorriso aparece e as pestanas coladas o riso às aguas
- não há duas gotas iguais -
a rir às águas, ao mar e ao homem que nasceu nas rias
de olhar da cor do mar

e rir.... rir até o sol se pôr? rir até nos atirarmos para cima das areias de cansaço de rir...?
e ver a areia brilhar
fustigados
cansados
e macia e fina
e sensual a areia.
e o sol quente
e o cheiro a maresia - a algas
o sol aquecendo a areia

cheiro a verde e mar
cheiro a flores do mar
e um monte de camarinhas nas mãos
de pérolas de dunas

veja o mar por mim....

domingo, 9 de setembro de 2007

nada espero
tudo espero

quero?
.preciso.
não estive para ninguém. nem sequer eu entrei. perdi a chave de mim.
as palavras como marés. ou ondas. diluindo-se mal se enformam. esfumam-se assim que tocam.
benditas águas que se esvaem por entre os dedos. algumas deveriam ser apenas vapor. ou nada.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

tristeza não é ser infeliz...

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Leio doce e uma revolta surge inesperada em mim. um qualquer choro contido. por isso me envolvo em ruído. porque não seria capaz de suster esta revolta. leio doce e correm doces as gotas da minha alma. leio revolta e ouço os gritos mudos que se enovelam num canto escondido como criança fechada num quarto escuro. doce. como um eco. longínquo. um eco que não encontra nem uma parede sequer...

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

outra palavra qualquer

regresso lentamente. não sei se a uma mesma casa. sou outra e no entanto quando me falo encontro sempre a mesma. a mesma e os seus fantasmas. bons fantasmas que me acompanham. regresso de uma viagem sem saber o quanto ficou ainda lá de mim. - talvez ainda não seja desta vez que volte -. algo de mim permanece naquela sala ruidosa onde as vozes são efémeras como todas as vozes que não tocam mas gritam. gritam para ver quem fala mais alto. quem importa. tão absurdo como outro lugar qualquer. como este. como esse donde lê. que importa.
sinto o silêncio necessário e contudo uma e outra vez o nego. a uma terceira talvez.
corre-se sem saber porquê. corre-se cansada. cansaço de quem procura a alma. não é alma mas pouco importa, é apenas outra palavra qualquer.

domingo, 29 de julho de 2007

quinta-feira, 19 de julho de 2007

o tempo é a melhor partilha quando se gosta.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

a sã insanidade da vida de todos os dias

sexta-feira, 6 de julho de 2007

domingo, 1 de julho de 2007

nascida no tempo das cerejas...

(soube agora e soou-me tão bem...)


L., 7 anos
"Tudo o que preciso quando o universo acabar é de uma toalha"
é assim quando finalmente se alcança a pergunta Fundamental da Vida, do Universo e Tudo Mais ("answer to life, the universe and everything")

sábado, 30 de junho de 2007

entre grãos de areia, quase minúscula também. não fosse um olhar. ou um acaso. de a desvendar num grande mar. seco. nem espera uma gota de chuva. está. é. efémera. como o universo.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

dear heart

fiz hoje o primeiro electrocardiograma da minha vida - exigências laborais.
trespassada por uma energia invisível, deitada e semi-nua, bastaram poucos minutos para se obter um registo mensurável do que me faz mover. no fim, olharam, avaliaram e disseram 'está tudo bem'.
nada que já não soubesse: o meu coração é um resistente.

my dear heart, tomorrow it's another day...

terça-feira, 26 de junho de 2007

saudade

não é palavra da língua portuguesa

é uma voz no coração

segunda-feira, 25 de junho de 2007

mudança de género

os jornais que temos...
pela primeira vez sai o meu nome no jornal (se não contar com os artigos que publiquei). falava de um acontecimento em que estive envolvida. e citaram-me. citaram-me? não. porque, de um momento para o outro, mudei de sexo. no Luísa, caiu o 'a'. e na 'função' profissional adoptaram o género masculino. vá lá, copiaram bem os apelidos da documentação distribuída.
ah! e no fim da citação de parte de um texto meu, também se esqueceram de fechar as aspas.
terá sido machismo, interroguei-me. e ainda fiquei mais inclinada para uma resposta positiva quando me falaram um pouco mais da pessoa que escreveu tal notícia...
enfim... detalhes... o que importa é o evento ser divulgado.

adenda: só umas horas depois é que me lembro que afinal não é esta a 'primeira vez'. é a terceira, se considerar uma das outras duas, em revista online.

domingo, 24 de junho de 2007




parece que o verão já chegou


e eu (ainda) numa varanda enfeitiçada
pela distraída primavera





Le Balcon à Vernonnet
P. Bonnard

sábado, 23 de junho de 2007

detalhes

gosto de cartas.
de livros com cartas, de cartas em livro.
de cartas como livros que se abrem e folheiam.
de livros como cartas que beijam e se despedem até à próxima.
gosto de cartas. que nos dizem e nunca acabam.
cartas. como livros. que falam.

Rapariga lendo uma carta junto a uma janela aberta (detalhe)
J. Vermeer

quinta-feira, 21 de junho de 2007

sentido contrário

quando as ondas arrastam para a praia
acorrento-me a um mar de nenhures

terça-feira, 19 de junho de 2007

do amor § 3

abro a mão. abro os meus dedos. e vejo a água a escorrer como quem ama.
simples afago. num tocar sensível. breve.
nem península nem arquipélago
ou ilha.

barco ancorado ao mar
ou ao céu:

é a minha terra, porto
que me abriga.


as ondas passam por mim.

domingo à tarde, Carcavelos

quinta-feira, 14 de junho de 2007

mundo : pedra

é sobre o chão que nasce

algo mais sólido e duro

mais obstinado

que os pedras de uma pirâmide.




aponto para o céu

e todos lá em baixo gritam:


sob chuvas de pedras


: os sonhos não são de pedra




aponto para o céu:



em sonho de pedra

sempre antes de um amanhecer...

ou num nunca qualquer...

um dia disseste-me que ao ver este filme lembraste-nos.

talvez nem nunca soubeste que tinha estado em Viena
e não vi por lá uma valsa chamada rio

porque os pés ou o coração tinham-se perdido
ou enganado nos passos

um dia disseste-me e
eu acreditei

acredito sempre sem
perguntar até que a morte
sufoque

em todos os dias, de todas as possibilidades, escolhemos sempre as impossíveis.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

metro: baixa-chiado

desciam as escadas rolantes. um dos quatro lanços do metro do Chiado. era véspera do dia de santo antónio e estava sol. ele de costas para o fundo, ela de costas para o topo das escadas. corpos encostados, beijavam-se num beijo quieto onde não se vislumbravam movimentos. prestes a terminar aquele lanço ele vira-se e andam até ao próximo. aí, ele à frente, torna a voltar-se para ela e unem as bocas, encostam os corpos, quietos. e assim continuam a descer essa e todas as outras escadas, até ao corredor. quatro longos beijos intercalados por uns quantos passos. ou o descer às profundezas através da união de duas bocas. sem aparente paixão ou intenso desejo de penetração. um beijo como um jogo, como uma combinação, como uma promessa...
nunca podemos ver o que os outros vêem. só eventualmente podemos sentir o mesmo perante esse mesmo objecto.
- pois não é o Sentimento o que há de mais universal ?! -
... fico de pé, vendo-os de costas, desistentes. ou esvaindo-se. tropeçando no próprio cansaço.

terça-feira, 12 de junho de 2007

estou cansada de gente cansada! de gente que arrasta a alma.

domingo, 10 de junho de 2007

Hoje é dia de Portugal. e de Camões. e falam também vagamente numas 'comunidades'. ou seja, gente que lá longe não perde um inexplicável vínculo a este nosso recanto. exilados... nós, em nosso próprio país? ou eles? pois, talvez "quanto mais ao povo a alma falta / Mais a (minha) alma atlântica se exalta".
Não é por ser 'este' dia que aqui escrevo, é por ainda haver alguém que diz resistir por esse mundo fora, como que escrevendo "Restam-nos hoje (...)/ O mar universal e a saudade."

imagem retirada de 'resistir' ; palavras de F. Pessoa

sábado, 9 de junho de 2007

o que nos agarra

a passagem dos anos também se mede pelas feiras do livro. mais uma. aproveito o dia feriado para lá ir. muita gente, ainda mais quando se rompe uma conduta da água e uma das ruas se transforma em riacho. a rua que percorro enche-se demasiado por pessoas que fogem aos pés molhados.
procuro alguns livros que tinha em mente, encontro outros que já quis e não comprei, outros ainda que descubro ou redescubro. e reparo na diversidade de interesses que tenho tido ao longo da minha vida de feiras do livro e que se vê nas prateleiras das minhas estantes. divergência ou ecletismo? ficam ainda uns por comprar, hoje ainda faço uma breve lista para compras de última hora, ou talvez substitua alguns por oportunos livros do dia.
naquele ritual, de sobe e desce, de pára e avança até ao próximo stand, faço sem querer um paralelismo com as viagens pela blogosfera, por vezes olhando de longe, outras folheia-se apenas, outras detemo-nos para ler mais um pouco. e os raros puxam por nós, como se agarrassem às nossas mãos, à nossa pele, e levamo-los para casa, ficam connosco mais um tempo dando o prazer ou a dor de (n)os ler.
perco as horas perdendo-me por entre renovada curiosidade. e neste perder saboreio este não querer saber, não ter ninguém que me acompanhe ou a quem eu tenha de acompanhar com aconteceu outras vezes, por haver ritmos, interesses tão diferentes. por terem medo que eu me perdesse... que bom é perder-me! e parar e andar e folhear e respirar quando nos urge. sem perguntas, sem respostas. mesmo que sem partilha. afinal ali a comunhão é mesmo com os livros, numa relação íntima, tão corpórea.

terça-feira, 5 de junho de 2007

folhas de maio

t. estava ali à minha frente. de pé. quase surgida do nada. olhei-a sem perceber de imediato se estava triste ou serena. aliás nem mais tarde, recordando este episódio, saberia dizer da expressão do seu rosto. apenas entrevi a da sua alma. vertical, olhava-me nos olhos, os braços delineavam o seu tronco, e as suas mãos, uma prolongava-a em silêncio, a outra calava-a nos dedos fechados. dedos apertados à volta de um maço de papel. um maço nem grosso nem fino. um maço, não, dois, agora perfeitamente distinguíveis pela diferença de cor dos laços que os dividiam.
por entre dedos e um certo amarelado do papel, duas fitas, quatro pontas, duas cores de dois tons, quatro cantos de folhas dobradas. cantos de outras tantas vozes. cor rosa tom esbatido e um verde matiz turquesa. em esbranquiçados pelas mãos que tanto sonharam.
o braço da mão vazia move-se até se juntarem as duas mãos em torno daquele volume. e os dedos separem aquela unidade numa divisão natural, talvez por uma certa perturbação, talvez por intenção. estende as mãos em desejo de esvaziamento e ouço:
quero que fiques com elas: quero ficar longe delas.
tento tomar com as duas mãos os dois maços que se separaram. agarro um facilmente. o outro, o outro fica entre as nossas mãos. não forço, apenas a olho. poderia perguntar, perguntar qualquer coisa que fizesse sentido mas a leve resistência que senti, não o permitia.
em silêncio, olho-as. olho-a. olho para as que tenho na minha mão, por já não doerem tanto
não sei o que fazer com elas: guarda-as.
guardo-as?!
guarda-as! queima-as! publica-as como se fossem tuas! ou duma tia-avó solteirona do século passado.
e lentamente:
ou de há dois séculos, seria ridículo, nem era crível escrever-se ainda assim. assim…
as nossas mãos continuam presas ao outro maço, sem saberem o que fazer. também elas sem o saber.
não quero ficar longe delas: não posso continuar perto: eu e elas: sós.
olhando um vazio, esboça uma espécie de sorriso. e puxa as folhas para si, encostando-as ao seu corpo, como se a hesitação fizesse com que se abrisse e as tragasse. quase sofregamente.
liberta, agarro nas outras cartas esmaecidas atadas, guardando-as no meu colo.
cativa, agarra no outro maço de cartas esmaecidas atadas, guardando-as no seu peito.
cúmplices em dois sorrisos breves, íntimos, em duas bocas fechadas, compenetradas, desmentindo a quietação:
e agora: o que é que eu faço?!


Maio 2007

domingo, 3 de junho de 2007

quero abandonar todas as frases que façam sentido.
- há quem as procure -
(talvez as tenha procurado sempre)
e de que valem? se não é nas frases com sentido que se encontra algo que faça sentido
se calhar nem é simplesmente em qualquer frase
o sentido vem antes da estruturação em frase, só depois se tenta visibilizar, comunicar em composição
e depois há frases que destruturam o sentido de outros sentidos

e se agarrar numa palavra? numa só palavra, numa palavra por dia
- terá cada dia uma palavra que o signifique? -
- que dê o sentido que tantas vezes fica perdido no meio de multitudes? -
que palavra é o dia de hoje?
terá sílabas? acentos? ou apenas a modulação de uma voz desconhecida?
- poderia suspender todos pontos de interrogação
(pela sua não existência senão num qualquer sentido que se artificializa) -

( será a palavra de hoje sentido )

esta palavra não é senão um descritor. não se constitui um significado. não neste momento.
como um pretexto. um pre-texto.
num texto como cemitério de sentidos.
ou uma palavra como semente de uma nascente escritura.

quarta-feira, 30 de maio de 2007

duas cadeiras com vista para um sonho

e descalços seguimos...

terça-feira, 29 de maio de 2007

cai a noite. acendo um incenso de sândalo. talvez se cumpra a promessa de paz.


segunda-feira, 28 de maio de 2007

numa esquina

cruzamo-nos depois de tanto tempo. em pouco dias, os caminhos interseptam-se, desta vez apenas nós dois. poderia dizer finalmente nós dois, e de certa forma, é-o. talvez seja esta pela primeira vez desde que te conheci que consegues olhar o mundo de um modo não-desistente. há afinal um lugar no mundo para ti. perguntas: terei chegado a tempo? respondo à tua não-pergunta: estaremos nós neste tempo? seremos nós deste mundo? prosseguimos porque as frases não foram ditas bem assim. que importa se era assim que as poderíamos ter dito?! lembro, comparo - é inevitável não ver as diferenças, nem que seja a do teu olhar sobre mim, como se pela primeira vez me tivesses visto - é inevitável não ver o que me levou a apaixonar-me por ti, pela primeira vez em grande paixão adolescente: o sorriso, o jeito algo desengonçado, a suavidade, uma certa timidez - ainda hoje não sabes onde pôr as mãos - e a melancolia gravada no olhar. hoje acentuada por olheiras que não fazem esquecer as marcas dos anos nem de escolhas da vida. olho para ti e lembro-me aos quinze anos. e dos escritos ainda guardados, cheios de um coração que lançava ao vento, aos pedaços, tantos quantos aqueles que tu o fizeste. não, tantos quantos aqueles que eu fiz por ti, e por ele e por ele e por... um coração aos pedaços não é um coração partido, nem dividido, é um coração que se estende que se alarga que se oferece como cerejas.
depois de andarmos um pouco, de conversarmos sobre ti, sobre mim, sobre rumos vísiveis prendidos por laços invisíveis, é a hora das nossas ruas se separarem. abrandas o passo, quase páras, até dizeres 'vou por ali' e eu ver nos teus olhos um quase desmentir. e digo 'vai' e sorrio. e calamos 'a gente vai-se encontrando por aí'.
nos meus olhos ficas tu, e nós adolescentes.

domingo, 27 de maio de 2007

coisas do sentido

amigos & fondue de chocolate

Chiaroscuro



as sombras conferem visibilidade. sem elas não há volume, tudo seria plano, como se só houvesse luz.
uma clara, breve e cingida luz alumia mais intensamente do que uma homogenea e monotonamente forte.
nesse momento vislumbram-se os contornos, a espessura, a textura e a matéria que a compõe.

Caravaggio
pormenor

sábado, 26 de maio de 2007

na carne...

Existe na nossa carne uma parte esquecida de nós que nos dá este ar perdido. Esta parte irrepreensível, a confissão confessa-a mas não basta para a circunscrever: as imagens estão em nós independentemente da nossa vontade, e a sua permanência impede-nos de qualquer rememoração definitiva. As nossas recordações são imagens que nunca podem tornar-se objectos: este carácter imaterial da imagem dá-lhe uma força de expansão que assombra mais ou menos a nossa vida interior segundo a vivacidade dos nossos fantasmas. Esse corpo tocado, escrito pela história afectiva da nossa sensibilidade, é o contrário desse corpo objecto que cada um de nós pode discernir aqui. O invisível da minha carne é o inverso do visível.
Bernard Andrieu

na banheira, 2003, 2005
óleo s/ tela

teste?

Não sou muito de testes / interpretações sumárias - nem mesmo quando académica e profissionalmente tive de lidar de perto com eles. Mas a este achei piada: teste das cores.

Como você opera, age, frente aos seus objectivos e desejos: Esforça-se por obter vida plena de actividade e experiências, e uma ligação íntima que ofereça realização sexual e emocional.
Suas preferências reais: Está insatisfeito. A necessidade de fugir ao envolvimento constante com suas circunstâncias presentes torna imperioso que encontre alguma solução. A situação presente contém elementos críticos ou perigosos, para os quais é imperioso encontrar solução. Isto pode levar a decisões súbitas ou mesmo imprudentes. É rebelde e rejeita qualquer conselho.
Sua situação real: Sente que está recebendo menos do que lhe é devido, mas que terá de conformar-se e adaptar-se a sua situação. Sente-se sobrecarregado com mais do que sua justa parcela dos problemas. Contudo, atém-se as suas metas e tenta superar as dificuldades sendo maleável e acomodado.
O que você quer evitar:
Interpretação fisiológica: Tensões resultantes de incapacidade de manter relações de maneira estável em condição desejada.
Interpretação psicológica: Deseja alguém com quem possa compartilhar plenamente de uma atmosfera de clara serenidade, mas a compulsão para demonstrar sua individualidade leva-o a adoptar uma atitude crítica e exigente. Isto provoca desentendimentos que levam a períodos alternados de aproximação e afastamento, de modo que não se permite o desenvolvimento do estado ideal que ele deseja. A despeito do impulso para satisfazer seus desejos naturais, impõe considerável contenção aos seus instintos, na crença de que isto demonstra sua superioridade e o eleva acima do comum. É perspicaz, crítico e exigente, tendo gosto e distinção. Estas qualidades, combinadas com sua tendência para formar seus próprios pontos de vista, permitem-no julgar as coisas por si mesmo e expressar suas opiniões com autoridade. Aprecia o original, o engenhoso e o subtil, esforçando-se por ligar-se com outros de gosto idêntico que possam ajudá-lo em seu pleno desenvolvimento intelectual. Deseja a admiração e a estima dos outros. Em suma: refinamento intelectual ou estético.
Seu problema real: Tem prazer quando está em actividade, e quer ser respeitado e estimado pelas sua realizações pessoais.
(no comments...)

segunda-feira, 21 de maio de 2007

ser do sonho

"é preciso sonhar os sonhos até ao fim..."
às vezes não se sabe como começam os sonhos. e quando. só se sabe que são sonhos quando nos surpreendemos no meio deles, ou com eles dentro de nós. quando nos ocupam absolutamente, quando ocupam os espaços vazios entre as células que nos fazem sobre-viver, quando transformam essa matéria, num viver.
o fim do sonho não é um acabar dos sonhos. quem sonha, sonhará até ao fim, até ao expirar. tantos já morreram por um sonho, mesmo quando sonhando insistentes, só o espectro do sonho existia. outros levam a sua sombra para outros lugares de sonho, impedindo renascidos brilhos. como se o acabar do sonho fosse uma tábua que se afoga. como?, se os sonhos são o próprio mar...
como começam nem sempre entendemos, e quando acabam...?! como se sente que os sonhámos até ao fim? quando em luminosa luz do sol se vê a estrela ir embora e o coração já não treme, quando essa réstia de luz lentamente se apaga sob o olhar iluminado por uma minúscula gota de água, grávida de um arco-íris.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

Hope there's someone

Hope there's someone / Who'll take care of me /When I die, will I go
Hope there's someone / Who'll set my heart free /Nice to hold when I'm tired
There's a ghost on the horizon /When I go to bed /How can I fall asleep at night / How will I rest my head
Oh I'm scared of the middle place / Between light and nowhere /I don't want to be the one / Left in there, left in there
There's a man on the horizon /Wish that I'd go to bed /If I fall to his feet tonight / Will allow rest my head
So here's hoping I will not drown /Or paralyze in light / And godsend I don't want to go / To the seal's watershed
Hope there's someone /Who'll take care of me /When I die, Will I go
Hope there's someone /Who'll set my heart free /Nice to hold when I'm tired

Antony and the Johnsons, Hope there's someone, in I'm a bird now (2005)

http://www.youtube.com/watch?v=mbA0RmHD7RY
(de auscultadores e de olhos fechados... para quê imagens?)

terça-feira, 15 de maio de 2007

vai

...,
as amarras são apenas uma paragem...

segunda-feira, 14 de maio de 2007

não. digo.

quando digo
é preciso começar todos os dias
é porque quero fechar o fim de um dia num baú escuro e
enterrá-lo bem fundo no outro lado do mundo.
quando o digo
é preciso cerrar os olhos num respirar de entranhas
cerrá-los com força até serem leveza de pálpebras
abri-los apenas ao chamar das flores e o sol lhes dar cor.
quando digo
é preciso começar todos os dias
não sei se fui eu ou o dia que já acabou.
quando o digo ainda não é dia.
na noite.

traves.suras


domingo, 13 de maio de 2007

saído da noite...

com o tempo, o regresso dos sonhos. aquela amálgama de pedaços dos dias, de pedaços de sentires, de pedaços de impossíveis.
e uma grande barriga onde nos abrigamos, como quando (talvez) crianças.

sábado, 12 de maio de 2007

onde...

e agora onde é lugar da escrita? onde é o lugar do grito? onde é a caverna sem eco? e o rio sem margens? o recanto... emudecido? lá, onde a palavra escrita é um silêncio. única suportável no silêncio. a única que não se confunde com ruído.
as pedras sob uns pés frios. frios até às pontas dos dedos.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

segunda-feira, 7 de maio de 2007

à luz de vela

Uma falha de energia eléctrica e fica-se desligado do mundo. lá fora, o lusco-fusco. estava deitada no sofá, recuperando do dia de trabalho. a música que ouvia tinha chegado ao fim há poucos instantes. o silêncio. e eu pensava se devia escrever. ou antes, escrevia mentalmente coisas desordenadas. nisso, a televisão ligada sem som - vício de gente que mora sózinha - apaga-se. o portátil em cima da mesa dá o sinal de passagem para a bateria. olho: ficou sem wireless. e penso, daqui a uns intantes fico sem computador - maldita bateria viciada!
Deixo-me ficar, tranquila, vendo o anoitecer pelos cortinados abertos. as luzes dos automóveis por entre a folhagem das árvores. e respiro... a luz indigo do céu. a gata sobe para o colo e deita-se. continuo quase imóvel. construindo pensamentos que não sei se partilharei. imóvel, sinto um barulho no estômago: e logo hoje que a comida era para ser aquecida no micro-ondas. vou esperar mais um pouco.
O bairro continua às escuras. escolho por ficar mais um pouco nesta involuntária interrupção. saboreando-a. a barriga volta a dar horas: deixa-me ir experimentar o forno do fogão, é mais lento, mas também, não sei quantas horas ficarei às escuras.
Sigo pela casa, sem me dirigir à cozinha. caminho sem chocar em nada. conheço-a com olhos de gata. vou até à outra varanda, na outra margem, a horizontal correnteza de luzes. regresso à escuridão do corredor. na cozinha, ainda alumiada pela pouca luz da janela, acendo velas, das pequeninas - darão luz suficiente -, e preparo a refeição.
Enquanto espero, agarro no meu inseparável bloco, numa caneta e começo a escrever isto. a certa altura, ouço o sinal sonoro do micro-ondas. na rua, os edifícios vizinhos estão já pontuadas por luzes. a vela que ilumina a escrita continua acessa. não me levanto para ligar o interruptor do candeeiro nem o computador entretanto em suspensão.
Fico mais uns instantes disfrutando um silêncio de uma outra dimensão temporal. um outro espaço criado pelo fogo da vela. olho-a... hipnoticamente... é isso: vou jantar à luz da vela.

quinta-feira, 3 de maio de 2007

thinking blogger award



Recebo de Ofeliazinha esta nomeação.
A blogosfera, uma teia que se vai fazendo e refazendo, não apenas um fluxo incessante de bytes, uma corrente de elos que se vão estruturando ou dissipando, construindo (ou não) o que cada um de (dos) nós pode(m) difundir.
Não quero quebrar esta corrente. Talvez fosse difícil nomear agora cinco blogues. Mas não, a escolha surgiu-me estranhamente clara. Mesmo que este seja um mundo tão diverso e rico (e o seu contrário, também).
Se o pensamento gera conhecimento, este está inevitavelmente próximo do afecto. A construção do conhecimento não se processa somente a nível cognitivo; o sensitivo, o afectivo, o emocional são vias privilegiadas na sua aquisição. É na relação entre a intuição sensível, a imaginação e o entendimento que se produz o conhecimento (como diria Kant).
Todas as minhas escolhas, fazem parte da minha 'história pessoal', pertencem-me por razões distintas. E são elas (aqui, como em mim, sem ordenação especial):

delicadeza

há algo que me toca profundamente: a delicadeza.
não é o delico-doce, o frágil-fraqueza, o subterfúgio ou o rodeio. prefiro então a aparente antítese: a robustez, a frontalidade, a franqueza, a amplidão... o cru. prefiro, e embora não seja isto de per si me toca. o que me atinge no fundo é tudo isto com a delicadeza. como se se tocasse, não com um dedinho fingido e pequenininho, mas com uma mão aberta, larga e cheia, mesmo que desajeitada, que penetra subtilmente como um fino fio de algodão-seda
.

do Lat. delicatitia
s. f.,
qualidade de delicado, aptidão para discernir as coisas mais subtis, subtileza, sagacidade, cortesia, urbanidade, afabilidade, tenuidade, brandura, suavidade, amabilidade, carinho, fragilidade, leveza...

terça-feira, 1 de maio de 2007

é Maio e chove...

atravesso a rua. a way to blue. como se as águas do rio se tivessem elevado e, agora, caindo. não é miúda nem tormenta. é. chuva. de maio. pétalas veladas que afagam a memória escrita no rosto. um rápido fechar de olhos prolonga o sentido. e a face suspensa cria-se tágide, em entardecer de lua cheia.

"...
Quem pode impedir a primavera
Se estamos em Maio e uma ternura
Nos faz abrir a porta aos viandantes
E o amor se abriga em cada um dos nossos gestos!
Quem?...
Se os sonhos maus do inverno dão lugar à primavera!"

Ruy Cinati, Nós não somos deste mundo
Cadernos de poesia, Lisboa, 1941, p. 33

------------------------------------

é maio e chove... evocando certas noites frias de inverno.

woman in red


Nu assis sur un divan Young Red Head in
(La belle Romaine) an Evening Dress
1917 1918
Amadeo Modigliani

modified modigliani

segunda-feira, 30 de abril de 2007

madrugada

apago a madrugada

afinal desse por onde desse o dia tinha de nascer.
como quem diz, riscar-se no céu.

apago as madrugadas frias

agora que vêm, dizem, os tempos das terras do sol
e nas bocas, pássaros e flores.

apago as minhas madrugadas
espremendo-as como se fossem bagas selvagens.

apago-te
amante madrugada.
de uma tarde.

domingo, 29 de abril de 2007

a atracção pelo abismo

(cartoon proveniente de um pps)

a sombra... e o sol... e talvez um último instante.
e as palavras pelo chão...

quinta-feira, 26 de abril de 2007

viagem

poderia ser um filme, ou uma viagem de comboio. nunca de automóvel. sim, também poderia ser de carro, ora conduzindo ora deixando-me conduzir. poderia ser um filme. dramático, cómico, intimista, ou por vezes, contemplativo à boa maneira portuguesa. uma amálgama de cenas quase neo-realistas ou então tiradas de um nouveau réalisme, com doses q.b. de humor negro ou de puro kitsch, pontuadas por reais ou maquilhadas nódoas negras, risos descontrolados, e momentos parados em que parece que a fita encrava, e contudo, nos deixa absortos numa qualquer imagem deslumbrante. onde o deslumbre vem da escuta, da observação de todos os pormenores, de todos os sons, de todas as sombras, de todos os movimentos que se prenunciam, de todas as matizes de luz. e de súbito, a carruagem avança, ou mete-se a primeira e tudo foge. tudo passa e esquecemo-nos das paragens e dos cais onde estivemos, onde amámos, onde crescemos. e só lá mais à frente, por vezes, uma outra sombra, uma outra luz, uma outra rua nos lembra algo dos lugares onde já parámos. lembra sem lembrar pois a viagem não pára. e por vezes nessa viagem, olhamos pela janela e projectado no vidro, como num ecrã, vimos de olhos bem fechados, os mil beijos como num qualquer cinema paraíso, os mil passos dançando à chuva, os mil ventos que tudo levaram. poderia ser um filme, uma viagem. a nossa, gente feliz com lágrimas.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

E depois de... 33 anos?

À pergunta, que já se tornou um cliché, onde estava no 25 de Abril, já escrevi aqui, por altura do 30º aniversário da revolução.
Esta pergunta pode ser considerada quase bacoca pelos mais novos, por aqueles que não apenas não viveram intensamente a revolução, mas por aqueles que não sentiram o peso do antes que existia. Não é a pergunta que é importante. É o sentimento que está implícito naqueles que viveram aquele(s) dia(s). É nostálgico, não há como negá-lo, porque para alguém consciente deste mundo sabe que aquela ingenuidade, aquela utopia dificilmente se repetirá. Foi por breves instantes a terra da fraternidade, onde se sentia... em cada esquina um amigo... em cada rosto igualdade. uma terra onde o abraço era espontâneo e a esperança via-se no brilho do olhar.
Surge-me neste mesmo momento uma analogia entre esta época e as nossas individuais épocas de paixão, quando tudo se crê possível e revelamos o melhor de nós próprios.
Talvez seja esse desejo de nos ultrapassarmos, pelo que há de maior em nós, o que nos continua a mover. Mas talvez isto esteja cada vez menos visível, tantas e tantas vezes, a um nível individual ou global.
Nesse difícil acreditar, recorro, e adapto, a uma frase ouvida a um pintor amigo de 83 anos: enquanto houver dois corações, haverá... 25 de abril.

o sangue que corre em nós ainda é vermelho como os cravos.


E pelas esquinas, revisito outras Memórias desses dias:

Foto tirada daqui
... terra da fraternidade...


pois!!!!

terça-feira, 24 de abril de 2007

revejo imagens antigas. está lá tudo, estampado. estava lá tudo e...
estava lá tudo o que era e o que podia ser.
estava...

segunda-feira, 23 de abril de 2007

quantas margens tem um rio?

faltam-me as palavras. ou talvez apenas as guarde num pudor ou incapacidade de tornar mais explicíto e claro, o que se amontoa num qualquer canto. a extração de palavras. quando às vezes se formam tão naturalmente como se respira. o obstáculo do meio comunicacional. nem sempre elas querem ser escritas, nem sempre querem ser ditas.
faltam-me as palavras, e após uma breve angústia, liberto-as: elas que assumam a sua própria vocação, pelo silêncio.

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Os poderzinhos

Íamos na 24 de Julho, um pouco depois das quatro horas da tarde. Conversávamos sobre modos de funcionamento, de exercício de poder ou decisão responsáveis - porque nem sempre, ou antes quase nunca, é a mesma coisa -, das implicações das acções decisórias de ânimo leve. A sua intenção que muitas vezes não tem em consideração as reais condições ou o benefício de todos ou de uma maioria de interessados, mas que porque há o poder, este é exercido. Quem tem o poder, decide, e o resto, 'obedece'. Mesmo que esse poder não seja senão um 'poderzinho'. Que nada mais faz de útil senão exercê-lo, porque o detém. Assim íamos e surgem sirenes da polícia lá ao fundo, mandando afastar o trânsito, fazendo-o parar à sua passagem. Era uma série de viaturas, civis e do corpo diplomático, agentes à paisana com auriculares sentados no lugar do morto, com ar super-vigilante, como se a qualquer momento alguém lhes barrasse a sua preciosa e rápida passagem por aquela via. Um carro que ia atrás do nosso apita, concerteza revoltado com o aparato, com a 'obrigação' de paragem: quem são estes para importunar e desviar toda esta gente que vai no seu caminho?! Sorrimos com cumplicidade "pois... gente importante", "VIPs". A visibilidade súbita das palavras que tinham sido proferidas. Cada um exerce esse poderzinho à sua escala, à sua possibilidade: na política, na empresa, no departamento, no seu cargozinho de sub-sub-sub-chefe, e em última instância... na própria casa. E nessa altura, caiu um breve silêncio. Pesado e breve silêncio.

terça-feira, 17 de abril de 2007

uma abelha nos cabelos

sentiu-se a florescer. não tinha sido apenas o azul quente e o vento morno que a tinham convocado todo o dia. de quando em vez conseguia escapar-se para o terraço, fechava os olhos e recebia a luminosidade intensa na pele. inspirava fundo, quase se engasgando com o chilrear dos pássaros que sobrevoavam os telhados vizinhos.
não tinha sido apenas no breve passeio ao pé do rio, quando ao calor do sol, as suas mãos se diluíram abertas, ao ler, ao ouvir o som da amizade chamá-la de minha querida, pela segunda vez num só dia.
sentiu-se a florescer. e disso só teve consciência quase ao fim do dia. estava à espera do comboio de regresso. vinha ainda com o sol e o vento e o calor. um leve estremecer à sua volta. um zumbido. os cabelos que revoavam por algo se lhes prendido. leva a mão à cabeça, sente um ser estranho, um bicho, umas asas. tenta sacudir ingloriamente. mais outra vez. com a mão tenta tirar o animal preso como uma mosca na teia. a aranha sorri. sacode outra vez. uma abelha liberta-se atordoada e esvoaça para longe. é a primavera e chega o comboio.
- desculpe. tem um insecto no cabelo. grande.
sentada, vira-se para trás. olha a rapariga que fala. expectante sorri.
- tenho?
- sim, espere... é uma abelha...
mais uma vez leva a mão à cabeça e sente um ser estranho.
- pode tirá-lo?
tinham conseguido despertar a atenção de meia carruagem. a mulher que estava sentada ao lado, muda de lugar afastando-se. a rapariga envida esforços para extrair o animal dando instruções à 'flor':
- afaste os cabelos, está mesmo aí.
uma segunda abelha liberta-se atordoada e cai no assento do lado. um homem que se tinha levantado e aproximado, bate-lhe com a mão, fazendo-a tombar no chão. só as suas asas mexem ligeiramente.
ouve-se ainda um sussurro vindo do interior das pétalas:
- coitada.
florescia. era prova provada. e não tinha sido apenas... e era tanto.

domingo, 15 de abril de 2007

Let it grow...

Na natureza (humana ou outra) há duas (ou), três hipóteses: o crescimento, o decrescimento ou a degeneração. Em cada um destes sentidos, múltiplos caminhos. A vida sempre como potencialidade... obra aberta.

um dedinho mesmo no meio do coração:

"vou fazer uma coisa
para tu sonhares"

M., 3 anos e 7 meses

sexta-feira, 13 de abril de 2007

E assim logo de manhãzinha senti-me a brincar às casinhas...
Que forte imagem da infância! Um faz de conta que era tão (a) sério.

quinta-feira, 12 de abril de 2007

Confissões adolescentes (ou nem tanto...)

De tempos a tempos, lembro-me desta estória. De tempos a tempos quando esse sorriso surge, mesmo que ninguém o perceba, até porque pode não haver ninguém ali. Para facilitar a visualização, o que me ocorre é recorrer a um estereótipo. Assim, sem nada dizer, mas podendo-se ler tudo. Sorriso à mona-lisa.
No jantar de fim de ano, estavamos na sobremesa e alguns (poucos) com a sua medida já atestada, surgiu uma espécie de 'jogo', na linha da verdade ou consequência, mas sem consequências. Afinal, o ano curricular estava acabado. Mais do que jogo foi sobretudo uma leve 'psicoterapia' ou dinâmica de grupo. Cada um dizia o que tinha achado daquele ano de mestrado e, em particular do professor que incentivava/coordenava aquele jogo. Aliás, julgo que era esse o móbil e ele tinha razões para isso, a nível científico e pedagógico era um bom professor. Mas gosta-se sempre de ouvir. Há momentos da vida que se precisa. Adiante. E quando chegou a minha vez, foi isso precisamente que disse, concretizando um pouco mais. Disse-o porque era e é a minha opinião, e apesar de ter sido relativamente sintética, quis-lhe dar a entender que não era isso o que me tinha levado a não aceitar ser sua orientanda quando sabia que ele fazia questão de ter os melhores do ano. Entre o prestígio de ter aquele orientador, o contacto mais directo com os seus conhecimentos, e a liberdade, a autonomia, o querer seguir/descobrir a minha 'linha', optei por estes últimos.
Mas não é deste intróito que vem o meu sorriso. Ele surgiu quando o coordenador disse: 'A Luisa... a Luisa é muito segura. '
Pois...
------------------
Horas mais tarde... 7 da manhã e assim que se acorda não deveriam ser horas para se ter deduções destas.
Penso... numa qualquer sequência do que escrevi em cima e na noite anterior... talvez afinal tenha isto a ver com a minha adolescência. Das conversas-discussões 'intelectuais' tidas com meu pai. Lembro-me púbere, adolescente, idade de tentativa de afirmação e de mil ideias que se procuram e se querem experimentar, adoptar - em particular num todo-pequeno mundo tão relativista -. Idade em que as certezas são fortes por se saberem inconsistentes, mas que por força do pensar já se sentem imperfeitas. Há que adoptá-las para as poder contestar, para as poder pôr em causa. Nós mesmos. É assim que se cresce. Questionando-nos e encontrando efémeras-eternas respostas, opiniões. O que os outros, supostamente mais 'sábios' que nós, melhor podem fazer é colocar questões partindo do pensamento, da lógica do outro. Mas os 'sábios' só tinham eles mesmos respostas que afirmavam melhores e mais pensadas que as nossas... afinal todos esses anos a pensar tinham peso, tinham de ter muito peso. Para si próprio, não para um(a) adolescente. As coisas não eram só porque alguém dizia que era. Afinal, e se quem sai aos seus não degenera, ou quem pela espada mata por ela morre, essa sabedoria era ela própria relativa. Nessa altura quem morria era eu, pois essas 'conversas' acabavam quase invariavelmente comigo a sair do escritório a chorar. Doída por não ser compreendida, doída por me apelidarem 'de convencida', doída por não ter um pai que entendesse as minhas 'certezas' (já nessa altura entendidas como) tão relativas. Eram confrontos duros, e mais do reveladores de capacidades cognitivas, eram-no sobretudo de fragilidades emocionais, afectivas. Lembro de, cheia de lágrimas, ir para o meu quarto ou sótão pensando algo do género: posso não saber, mas tu também não sabes... [do mundo?! de lidar com adolescentes?! de lidar com opiniões diversas?!]. Sei agora que também a tua garganta devia ficar seca, cheia de nós... que não sabias resolver.
A aquisição do 'respeito' foi um processo árduo... se foi. Sobretudo em mim. Porque para os outros quantas vezes basta o estatuto, o aspecto... aparência?! A quem o tenha, dá-se toda a credibilidade e todos os créditos antecipados. Assim será sempre.
Para mim, não basta parecer. Nunca bastou. Por isto. Por tantas outras longas coisas...
E, no entanto... a (in)segura e (in)certa sabedoria...
envolta em tal sorriso.
(Obrigada, papá)

segunda-feira, 9 de abril de 2007

o sentimento de incompletude revela-nos o que, sem o possuírmos, somos.
nessa insatisfação encontra-se paz.

à semelhança do teorema da incompletude de Godel "o sistema N não permite demonstrar a sua própria consistência". (advertência: esta é uma nota absolutamente pretenciosa e/ou lúdica, conforme juízo do leitor)

domingo, 8 de abril de 2007

o regresso das aves

é hora de almoço de um domingo de páscoa. talvez devesse almoçar em família. poderia se o quisesse, é este meu ocasional feitio de bicho do mato que o impede. na inevitabilidade prefiro assumi-lo nas suas últimas instâncias. até ao limite. esticando a corda até a solidão se converter em prazer. na minha sã loucura ponho o despertador a um domingo. no entanto, desligo-o muito antes dele tocar. é manhã e a manhã é minha. há gestos que nos 'devemos'. quando olhei ao espelho ainda questionei. mas senti que era-me necessário. como se não fosse já a minha vontade a condicionar. porque há momentos existencialmente nossos. vivenciados de um modo absoluto na indiferença de outros.
parecia que ia chuviscar. por momentos agarrei-me a esse possível facto. não há certezas de nada, mas as previsões, as intenções, as pressunções são apenas isso mesmo. a 'realidade' é sempre diferente.

no regresso, a pele quente, o olhar cheio de azul e verde e asas. das águas reter apenas a sua perturbação pelo voo rasante dos pássaros. a tranquilidade. incrivelmente plena. o tempo de escutar. de contemplar. os tons de todas as árvores, de todos os reflexos. as melodias de cantos e sons. o tempo dos outros nos seus gestos lentos dominicais. um jovem captando com a sua reflex os efémeros momentos a que nós dois assistíamos, um velho alimentando esfomeadas aves. a pomba que se aproximou confiante, e ali ficámos as duas imóveis olhando-nos. o par vestido de túnicas vermelhas que passa: cruzo o olhar com o da mulher (estrangeira?), sorrimo-nos, ela diz algo que me parece 'boa-tarde' e eu respondo algo parecido com 'boa-tarde'. ali permaneço sentada de pernas cruzadas em cima de um banco comprido 'falando' com as pombas, uma de tons brancos, outras raiadas de azul, uma outra cinzenta de penas fofas que se acolhe junto a mim - ou eu a ela -, uns pássaros negros de bico laranja (tordos? - é a minha ignorância, mas hoje não são necessárias palavras ou nomes para sentir... nunca são -), patos, pardais, rolas.
neste tempo nunca houve solidão ou o senti-la como tal. havia tanto. é o que fica. se as coisas assim o são, porque o havemos de contrariar, iludir? saboreio, alimento-me desta condição verde e de todas as cores, ela transforma-se em arco-íris. regresso a um lugar primordial e respiro.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

plágios... e traduções

Pela terceira vez em três anos encontro plágios de posts que escrevi. Transcrições de posts inteiros, meus, sem menção da proveniência. Na primeira há cerca de dois anos, deixei um comentário. A moça disse ter sido um lapso e colocou a 'autoria' devida. A segunda, há poucos meses, como não havia caixa de comentários, escrevi para o e-mail do dono do blog. Passados uns dias o blog estava limpo dos meus posts 'roubados' e de outros, que também supus serem de outras autorias - cada um tem o seu modo tão próprio de escrever que as diferenças, por vezes mínimas, se notam logo. O terceiro plágio encontrei-o hoje, num blog que me parece brasileiro, e não era um, nem dois, nem..., era uma série de posts meus, ali escarrapachados como se fossem dela. Alguns integrais, outros incorporados, e um ainda em que se deu ao trabalho de mudar a data que eu tinha (2003) para 2006. Deixei um comentário um pouco impulsivo... fico a ver se há ou não 'respostas'... nada posso fazer, mas também não é assim tão relevante. Cada um fica com o que faz ou não faz... Cada um tenta ser feliz da maneira que pode ou consegue...
E perante isto, não sei se sorria, se me encha finalmente de orgulho pela minha escrita ser digna de ser 'roubada'... se...

Mas falando de assuntos mais positivos. Um dia encontrei na blogosfera um 'poema' meu (acho que era este) traduzido em alemão, e com a devida referência do original. Era um blog suiço. Confesso que 'inchei'. Tentei hoje encontrá-lo, em vão. Tenho pena de não o ter guardado. Talvez um dia o encontre de novo neste pequeno-grande mundo da blogosfera.

Notas posteriores:
1) A blogosfera tem também destas coincidências, encontro hoje um post de assunto idêntico no Insónia.
2) Passados 3 dias, não há vestígios dos posts do tal blog que tinham sido publicados a 4 de abril e antes disso. Puff.... sumiram...

quinta-feira, 5 de abril de 2007

as telhas e o respeito

por vezes as pessoas são de uma extrema violência. sem se aperceberem, sem quererem, entram de rompante, sem olhar, sem escutar, sem atender ao outro. em especial as pessoas próximas, familiares, que julgam que os outros são eles, 'deles'. e se uma pessoa se mostra incomodado, ainda ficam ofendidos, agridem porque mais uma vez nós somos 'deles'. o nosso espaço íntimo tem de estar sempre à disposição. o nosso silêncio, o nosso estado de espírito. e quando não está sentem isso como ofensa, como recusa de afecto. e se pode ser vulgar a invasão por estranhos, por aqueles que supostamente nos compreenderiam melhor, com os que nos amam, no fundo gostaríamos que fosse diferente. são também pessoas, é o pensamento que nos leva a relevar. mas há momentos em que estamos demasiado sensíveis, em que precisamos ou estamos demasiado embrenhados nesse nosso espaço interior, e isso afecta-nos. é necessário 'treino' para já não doer. e às vezes somos principiantes da dor. outras, mestres.

hoje à tarde enquanto faziamos horas fomos para uma esplanada à beira-tejo. falámos de telhas. claro que cada um é como cada qual. o direito às telhas é inegável (esta frase assim dita parece muito reivindicativa). mas que direito temos em atirar para cima dos outros as nossas telhas? (especialmente aquelas pesadas e intrusivas). a uns dá-lhes para implicar, descarregar em cima do outro o seu mau humor, outros deixam-se ficar no seu canto. que respeito têm aqueles primeiros pelo outro? porque é disso que se trata! falta de consideração. no fundo, uma enorme falta de respeito (e de amor) e excesso de egocentrismo. assim como o é, aqueles que não estando com a telha, picam quem está com ela e está no seu canto (no seu espaço íntimo) em silêncio, porque querem à força que a pessoa interaja, fale, explicite motivos, razões ou outra coisa qualquer.
quantas vezes as relações mais próximas não são jogos de manipulação, de tentativa de conversão do outro àquilo que julgam ou querem que seja?
quão difícil é a liberdade, o respeito pela individualidade de outrém, a aceitação do outro.
oh! mundo complicado, hem...

quarta-feira, 4 de abril de 2007

do afecto

Quando se parte, pode ser durante muito ou pouco tempo, quando o silêncio afasta, as palavras só regressam a quem escreveu páginas comuns. das outras, as folhas morrem brancas e vãs.

automatismos sonoros

fecho os olhos. são as gotas de mar que tocam a ionosfera. as notas de um piano, límpidas por entre ondas das águas. apartada da natureza, é a arte que ilumina, incendeia como um rastilho rasteiro. abre-se o espaço. vago. do cerne, uma voz subindo lenta. manso tornado meigo. circular coluna de fumo que se inspira -expira. in-completude nocturna: watching the sun.

terça-feira, 3 de abril de 2007

saltimbancos

agarrar em palavras
atirá-las ao ar
num rodopio malabarista
deixá-las subir e vir
cadentes
até cairem
pelas palmas abertas
escorregadias

agarrar em silêncios
embebê-los nas bocas
ardentes cerradas
ingeri-los e num jorro
expulsá-los em fulgor
de fogo

agarrar em gestos
pendurá-los reversos
em cordas e travessas
e retortos
traçarem trapézios



Capriccio Musicale (Circus), 1913
D. V. Baranoff-Rossine

da preciosa gruta negra, uma luz azul. o exterior verde acolhe a pedra - esta, musgo.
a concha de gelo derrete-se num banho quente. sob a espuma fundem-se águas. calcárias.

segunda-feira, 2 de abril de 2007

na perfeição da lua os reflexos humorais da imperfeição .

sábado, 31 de março de 2007

Com o tempo vem a relatividade do tempo. Não aquela relativização das convições absolutas adolescentes em que o mundo quase acabava todos os dias por haver ou não haver aquilo em que se acreditava. Vem a lucidez de que acaba e que por isso mesmo existe. Ou que somos nós próprios a ter de fazer para existir. Num mundo interior - é esse o que pode mudar; o resto é apenas uma possibilidade ou potencialidade... ou ténue consequência desse outro mundo.

atravessa-se ruas e praças e pessoas.
atravessa-se lugares onde se faz e pensa.
se ri e chora
cruza-se amores e outros afectos
e raivas que se diluem
por o infinito espaço ser demasiado pequeno

troca-se o impulso pelo deslumbre
de todas as imagens
de humanas paisagens

não se corre atrás nem à frente. talvez se corra apenas, ou caminhe, ou sua qualquer ilusão.

quanto mais perto maior
a viagem
de que tamanho é o mar?
e a sua idade?

De olhos abertos na lucidez de que nada se vê
No desejo de nada ver
senão entes entretidos a construir quaisquer castelos de espuma
nas areias duma maré vaza

quinta-feira, 29 de março de 2007

a leste

sempre tudo de novo...

mudando a hora, o rio revela-se mais matinal, espreguiçando-se por entre margens e mouchões, navegando na névoa de negros navios

(fotografias tiradas às 6h38m)

quarta-feira, 28 de março de 2007

A minha gata indiferente à leitura, amarinha por mim, exigindo colo. Consinto, qual mãe culpada de estar todo o dia fora de casa. Sorrio ao vê-la satisfeita, saciando a sua afectividade. Meigamente vai picando-me com as unhas e ronronando.

terça-feira, 27 de março de 2007

regresso a

Coimbra, pelas mãos da morte. um pouco da minha infância e adolescência que parece ir... laços familiares, não por ser apenas família, mas por haver afecto profundo. ternura. passado. vivências de risos e canções. de natais e histórias contadas de outras infâncias em tempos idos. quando as crianças brincavam na rua com bolas e bonecas de trapos. quando dois irmãos também subiam escadas de sotão e implicavam um com o outro e havia ratazanas velhas que iam morrer junto às lareiras das pessoas que habitavam as casas. e as madrinhas que viviam na casa que também acolhia nas festas da rainha santa todos os parentes da aldeia. os sete filhos-crianças da vizinha viúva, moços que se tornaram honrados, e a pouca comida que ainda se repartia por quem ainda menos tinha. e começar a trabalhar em terna idade e a paixão pelo teatro - logo hoje, seu dia mundial - e a 'responsabilidade' noutras estórias de amor que começaram quase em palco. a prisão dois anos no Porto, por querer justiça e liberdade. a voz poderosa que finalmente se cala. mas ecoará na lembrança dos que o amavam. pedaços de memórias. deles e nossas. foi no abraço sentido que veio o choro incontido, quase infantil, com relâmpagos dos momentos de férias e brincadeiras e cumplicidades. embora parecendo quase esquecidas, reencontramo-las em adultas mãos dadas. como se as tivessemos dado ontem. porque esse nosso ontem está em nós, mesmo nem pensando que estava assim tanto.
hoje foi um dia triste. e na nossa tristeza soubemos sentir a alegria dos afectos.

foi por acaso ou em vão que há quase um século um homem e uma mulher se amaram? vamos deixar esse amor esvair-se no tempo como se não tivesse existido? juntemos as crianças. elas sabem brincar.


sábado, 24 de março de 2007

escrita

a escrita da primavera deveria saber a flores silvestres e cheirar a água fresca brotando de uma grande pedra branca, deveria ser pele e dedos que redescobrem novos veios.

por escolha, constrangimento e quase obrigação, a escrita vai ter de sair essencialmente das ideias.
há animais feridos que atacam
para que a sua dor se estenda aos outros
saudáveis

o elefante morre longe das respirações do olhar
buscando a bruma dos amores
imperfeitos

sexta-feira, 23 de março de 2007

dar

porque é que quando se quer dar algo a alguém tem de se dizer sempre que é da nossa parte?
não se pode dar só porque se julga que é bom para o outro, que ele vai gostar?
porque que é que as 'dávidas' sem autoria podem ser tão mal recebidas?
às vezes ter de manifestar a 'autoria' retira a quem dá a liberdade e a espontaneidade do dar. nem sempre é importante quem dá. só o dar e o receber.
sem segundas intenções. sem desconfiança.
só o acto. e o receptor. sem emissor.

terça-feira, 20 de março de 2007


Que importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra, se não amo e não tenho lar? É preciso ser dois – ou, pelo menos, ai de nós, ter sido dois – para compreender um céu azul, para invocar uma aurora. As coisas infinitas, como o céu, a floresta e a luz só acham nome no coração daquele que ama. A brisa das planuras, na sua doçura e mansidão, é o eco de um suspiro enternecido. Por isso, a alma humana, enriquecida por um amor eleito, anima as grandes coisas entre as pequenas. E pode tratar por tu o universo, porque conhece a embriaguês humana do tu.
Gaston Bachelard

(do prefácio à tradução francesa de Ich und Du [Je et Tu], Martin Buber)

segunda-feira, 19 de março de 2007

Quarto com vista para...

a Primavera
E de repente vi as olaias em flor. Olaias como a que havia no quintal da minha infância. A minha árvore.
Sempre sonhei fazer uma casa nessa árvore. Ficou pelo sonho. Mas é como se tivesse existido. Quando subíamos à árvore, de grossos troncos, e nos deixávamos ficar lá no cimo, sentíamos numa casa, invisível, mas tão real como as nuvens cheias de animais e seres fantásticos que olhávamos cá de baixo.
A olaia em flor, símbolo da minha primavera.

O facto de passar os dias fora de casa fez-me espantar com já todo aquele lilás rosáceo no balançar do flor-escimento.

já está vindo a Primavera

domingo, 18 de março de 2007

ao longe, o Tejo...




Há certos dias em que é urgente ir ter com o rio.
A necessidade de respirar aquelas águas surge premente, e não basta apenas a breve passagem de todas as manhãs.
Com o Tejo a dois passos, por vezes quase que corro para ele à hora de almoço; nos dias em que é preciso esquecer momentaneamente tudo e somente olhar, escutar o marulhar contra as pedras do cais, e lá atrás a cidade e as gentes e a confusão que os humanos geram.
Depois, regresso limpa e tranquila, e o resto da tarde de trabalho sai deslizando.

sábado, 17 de março de 2007

my radio stars

Nunca vou ser capaz de fixar nomes. A memorização só advém pelo significado. E do carácter único que se dá à coisa nomeada. E mesmo assim há circunstâncias ou particularidades só raramente inultrapassáveis. Mesmo com músicas que já ouvi dezenas de vezes, pergunto(-me) sempre: quem canta isto?
É mesmo um bloqueio, até porque quando ouço o nome, digo ou penso: ah, pois é!
Deve ser trauma de infância; meu pai propunha frequentemente: "dou um doce a quem souber de quem é". E no meu conhecimento musical infantil lá ia acertando: Bach, Haendel, Mozart, Schubert... mas nunca recebi o tal prometido doce.
Hoje acho que acerto menos do que com aquela precoce idade. E como o gosto se alargou, ainda me sinto mais ignorante. Além de ter um grande problema se penso comprar um CD.
A rádio tem-me salvado nesse aspecto: é só ligar o botão. Mas dado o panorama cada vez mais massificado-histérico, tenho-me voltado para as rádios alternativas.
à noite, depois de chegar a casa, ligo-me ao silêncio e aos sons, sem querer saber de nomes:

- à segunda-feira: vidro azul

- à quarta-feira: íntima fracção
(este fixei: Scott Walker em Just one smile)

- à sexta-feira: como no cinema

e claro, sempre que posso (senão há sempre o podcast), as boas conversas

ao sábado: quinta essência
[e se o entrevistado não for de 'minha preferência', há sempre outros motivos para ouvir(-te)]

durante a semana, ao fim da tarde: pessoal e intransmissível


E a última descoberta: miss-tapes

do amor § 2

É o regresso da Primavera.

Fechar os olhos. Sentir o sol na face, o calor no corpo ainda pouco destapado, e talvez haja uma leve brisa tocando-nos a pele. Um sorrir instintivo. Como se sorrissemos ao amor.
E espreguiçar como que abrindo os nossos braços a um abraço. Quente.

sexta-feira, 16 de março de 2007

nocturno

já há dias tinha pensado, ou melhor, sentido. hoje mais uma vez, provavelmente como consequência do almoço, condicionado no tempo entre picagens de ponto.
que saudades de noites infinitas, daquelas que sob uma brisa amena, horizontes descobertos, sem ponteiros de relógios, se vai desfiando conversa. primeiro, trivialidades, depois, pouco a pouco, cada um vai desvendando, penetrando em si, descobrindo-se e partilhando, devagar, entre falas essenciais, escutas atentas e silêncios que absorvem e entendem empaticamente o universo do outro.
noites de intimidade.
noites porque só no silêncio da noite é que as palavras assumem uma importância, um sentido, uma forma/conteúdo que é incompatível com a agitação do dia. são os sons nocturnos, a luz fusca que visibilizam o que não é imediato. como uma viagem ao interior de cada um, de cada outro.
saudades de viajar assim.

ao almoço § 2

comer muito mais do que é costume, e no entanto, saber a pouco.
saboreia-se a amizade. devora-se a distância.
quem dera fazê-lo todas as semanas, talvez assim a conversa ficasse mesmo em dia.

quinta-feira, 15 de março de 2007

ao almoço

Apetece demorar mais um pouco a esta mesa de café, frente a uma parede de tijolo 'burro'; em volta, vozes, estilhaços de conversas, vidas que se juntam quase todos os dias neste lugar, mais ou menos à mesma hora. Comigo vem almoçar o entusiasmo da manhã, como tem acontecido tantas outras vezes neste passado recente.
David e Golias. Assim somos nós, assim é este nosso projecto. Mesmo se por vezes o tapete parece sair debaixo dos pés, se o ritmo da passadeira acelera, ou se os mecanismos da engrenagem tentam emperrar, o ânimo, a paixão não diminui, antes se amplia, no fazer melhor, no envolver de outros potenciais participantes, no estímulo da troca e desenvolvimento de ideias... e pouco a pouco na sua concretização. Porque também depende de nós, da nossa capacidade de empreendimento, de acção, da vontade de contribuir para um colectivo - é um individual que atinge o seu pleno sentido na partilha, no comunitário.

terça-feira, 13 de março de 2007

voltar?!

a porta aberta.
sem hesitações, sem perguntas.
foi bonito, dizem. sorrir contente. tranquilamente.
sem expectativas.

foi ao octogésimo quinto passo, depois mais quatro, falta um
de outros.
passo, degrau ou simples respiração.

é no feminino que se desnudam dos véus. uma qualquer essência.

não é promessa ou desejo

voltar a fechar os olhos. nada mais. nada e inspirar profundamente.

terra...pouca.


Na estação de comboios surge Anna Karenina. Caminhando paralelamente. E não apenas pelos carris entrecortadas pelas traves, ou ritmos de destino(s). Apanhamos uma qualquer linha pensando que comprámos o bilhete certo. Durante a viagem olhamos pela janela e vemo-nos em paisagem desconhecida. Ali no meio de um nada. No centro de um qualquer mundo. Podemos deixar-nos ir. Podemos saltar.

Se nada sabemos...

Talvez haja um qualquer sinal verde.intermitente.vermelho. Ou numa cabine altaneira, um comando longínquo de agulhas que lhe atribua um outro rumo.

Ao correr do cais, um passo.

domingo, 11 de março de 2007

utopia?

"Ensino para que se aprenda a ver com os próprios olhos, a intervir com as próprias mãos, a entender..."

Mário Dionísio, Autobiografia, Lisboa: O Jornal,1987
já não chora como estrela perdida do seu lugar na galáxia
chora como um menino : não que lhe tivessem tirado um brinquedo, ou sequer ralhado
chora como menino : viu pela primeira vez:
não é torrente; só. única.
desprendendo-se fugidia sem querer nem saber
em espanto . impacto em
ondas com-centro por uma pedra caída no lago : com-fundo

sábado, 10 de março de 2007

da vida e da obra § 1

Morreu o poeta e ensaísta Fernando Alvarenga (1930-2007).

(Que eu saiba nenhum orgão de comunicação social nacional deu conta disso; apenas na sua terra: aqui.)

Ficam os seus livros de Poesia:
"Hoje na Madrugada", "Do Konjeve a Nzinga-a-Cuum", "Dizer País" (com David Mestre), a antologia "25 Poemas de Fernando Alvarenga", "Meus Cantos de Ainda", "A Mãe por um Menino", "O Íris da Cinza", "Na Gávea de um Lírio", "Treze Poemas para a Mãe".

E a sua obra ensaística:
"A Arte Visual Futurista em Fernando Pessoa” (Editorial Notícias, Lisboa, 1984)
"A Socialização da Arte em Fernando Pessoa” (AJHLP, Porto, 1985)
"Os Afluentes Teórico-Estéticos do Neo-Realismo Visual Português" (Afrontamento, Porto, 1989)
"A Arte nas Estéticas de «Orpheu»" (Editorial Notícias, Lisboa, 1994)
"José Régio Perante o Neo-Realismo" (incluído parcialmente na obra colectiva “Ensaios Críticos sobre José Régio” – Edições Asa, Porto, 1994)

Foi colaborador em publicações como:
Colóquio-Artes, Mealibra, O Escritor, Boletim do Centro de Estudos Regianos, A Voz de Ermesinde, O Correio do Douro, Jornal das Aves, Jornal de Notícias, Jornal de Letras e Artes, A Província de Angola, Prisma, Diário de Luanda, Convivium, Planalto, Convergência, Ecos do Norte, Diário Popular e República.

sexta-feira, 9 de março de 2007

do amor § 1

por vezes, o amor devolve o som que ecoa pelas planícies, pelas várzeas.
outras... recolhe-se em bicho de búzio.

quinta-feira, 8 de março de 2007

lugares do poder

em apenas noventa segundos, os impérios do Oriente Médio... nos últimos trinta séculos:

quarta-feira, 7 de março de 2007

há 20 anos

Foi sob estas tábuas que soube da morte de Zeca Afonso. Lembro-me... era noite e ouvia rádio e, com 99,99% de probabilidades, lia. Do andar debaixo, vinha o silêncio dos sonos da família. Como muitas outras noites na minha mansarda privativa... ou simples e mais propriamente, o meu sótão. A casa de exílio, de refúgio, desde precoce adolescência até à saída para a vida 'adulta'.
Deste lugar... dele, falarei mais, um dia.
Agora, vinha a propósito do Zeca. Nessa noite, nesse sótão, ouvi a notícia no silêncio da noite - quando a rádio era tranquila e nos falava -. E, como nunca tinha acontecido por alguém que não conhecia, chorei.
A morte tinha saído à rua... por um poeta-cantor.


Poema

I

Sobre os meus olhos
em ponto negro,
de cal pintados

-há dois corvos sentados


IV

Rio d' águas passadas
Meu rio escondido

V

Águas claras correndo,
Meus sonhos vão indo!
- São seixos rolando! -
- São pedras caindo ! -


VI

Oh! águas que lavam
as pedras do rio,
- Que vento nos leva
no sonho vazio?

In 'Via Latina', Ano XVI, nº 78, 28-2-1958, extra-texto

Hoje entre os "meus" papéis encontro um com poemas de quando era um jovem poeta.
Tinha deixado passar o aniversário da morte sem qualquer referência. Mas há pessoas que não precisam de data certa para serem homenageados. O que nos deram é já uma celebração.

terça-feira, 6 de março de 2007

era

era] uma vez
era] uma voz
era] ... voz humana

era] rio escorrendo no rosto
sombrio do cipreste

domingo, 4 de março de 2007

macro-croma


Experimentando a máquina nova numa noctívaga ida a Setúbal.

sábado, 3 de março de 2007

Traços

Traços de luz numa noite de eclipse
(era a lua que queria captar... das tentativas ficou isto...
"torrentes douradas"...
não me perguntem como aconteceu )



Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.

A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.

Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

Rabindranath Tagore (1861-1941)
respiro os últimos raios de uma lua inteira. ignoro todos os ruídos exteriores e interiores.
é bela. bela e redonda. círculo de magias milenares. fonte das marés de meu e d' outros mares. o início e o fim de um nome.

lu_
_a

nome guerreiro

depondo sempre as armas aos pés de quem se prepara para lutar. não há força que valha a guerra. resistência não é guerra. a lua não se transforma na terra, nem o sol em lua. mesmo que a penetrem, a esventrem, a cravem de bandeirinhas com listas ou estrelas.

não há revolta nem mágoa. a dor passa sempre.

já vos falei da dor?

a ânsia pela claridade arrebata.

aqui me tens. nada mais posso fazer.

não é cansaço. ser nunca cansa. como a luz.
alegria / melancolia / paixão / utopia
quatro das múltiplas fases de luas

na sua plenitude
a Lua é crescente e decrescente,
toda e nua.