domingo, 15 de outubro de 2006

Debruço-me sobre a sombra da morte. Pálida sombra de uma vida. Debruço-me. Antes o aperto. Não é receio. Chegará a todos. Nada há a fazer que enfrentá-la. Tomo-lhe a mão. Falo baixo. Tão baixo que é inaudível. Forço-me. Não quero que outros que não nós, nos ouçam. Afinal é a nossa despedida. Põe-me a outra mão por cima da minha que aperta a sua. Beijo-o. Como nunca tinha feito. A falta de ar. O olhar vago. Não chego a perceber se me escuta. Não importa, sei que me entende. Falo-lhe ao ouvido olhando-o nos olhos que não me olham. Como se diz que se gosta muito? Que se ama? Como se diz que nos lembraremos sempre? Que faz parte de nós. da memória, do presente. Sendo a memória um presente sempre em nós. Como se diz que o admiramos? Não sei como o disse. Disse-o. Por ele. Por mim. Pela sua vida na hora da sombra da morte. Por momentos não quis deixá-lo. Senti que a nossa vida – juntos – tinha sido tão pequena. A percepção que era demasiado tarde. O cansaço visível. A ausência de uma presença forte. Tão jocosa. A ironia de nos lembrarmos do riso na hora da morte. Era como ele vivia. É como o lembro. A irreverência. Pela revolta? A sensação de ter sido pouco amado. Não sei se o foi. É somente a minha percepção. E a tranquilidade. Apesar… Saio. Para trás, resta a penumbra do velho quarto. E a sombra da morte deitada. Estaco. Não estou ainda preparada para ir ter com os vivos. Olho-o pela última vez. Com a consciência da última vez.. O que se faz? Nada. Retém-se. Contém-se. Momentos depois avanço. Momentos antes tinha subido as escadas da Sé. Percorrido a calçada. Entro pela mão de uma criança. E com ela, sento-me nos bancos de madeira a ouvir uma oração entoada por crianças: Ave Maria cheia de graça. Eu não-crente pela mão de uma criança, peço o que me permito pedir. O não sofrimento, demasiado. Rogai por nós. O olhar da criança: senta-te aqui. Volto a sair, percorrendo as pedras antigas da calçada. Sob os olhares da Fé. É quase noite. Na sua ronda, a sombra da morte…
Transportando o som dos violinos, saio para a Rua da Vigorosa, talvez no número 770 encontre entre os rostos, um que seja o deste Bach.

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