segunda-feira, 30 de abril de 2012

a existência nos papéis

Entre papéis.
Organizo os papéis do último ano.
Arrumo papéis dos últimos nove. Papéis, papéis.
Provas de actos, provas de vida - vida tão pouca, ou vida de tanto - numa engrenagem em que se tem de justificar a própria existência.
Papelada que se guarda como lixo precioso.
Quilos e quilos em caixas brancas com os respectivos rótulos, para, se necessário, lembrar aos outros da nossa integridade, a nossa legitimidade.

Posso até conseguir lidar com isto tudo, mas este não é decisivamente o meu mundo... nem o meu tempo... isto e tudo, ou aqueles pequenos nadas, que pouco a pouco nos pretendem transformar no que não somos, nem podemos vir a ser.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

E agora, Liberdade?

Gravura de António Pimentel

Nunca pensei viver para ver isto:
a liberdade – (e as promessas de liberdade)
restauradas. Não, na verdade, eu não pensava
... - no negro desespero sem esperança viva -
que isto acontecesse realmente. Aconteceu.
E agora, meu general?

Tantos morreram de opressão ou de amargura,
tantos se exilaram ou foram exilados,
tantos viveram um dia-a-dia cínico e magoado,
tantos se calaram, tantos deixaram de escrever,
tantos desaprenderam que a liberdade existe-
E agora, povo português?

Essas promessas – há que fazer depressa
que o povo as entenda, creia mais em si mesmo
do que nelas, porque elas só nele se realizam
e por ele. Há que, por todos os meios,
abrir as portas e as janelas cerradas quase cinquenta anos -
E agora, meu general?

E tu povo, em nome de quem sempre se falou,
ouvir-se-á a tua voz firme por sobre os clamores
com que saúdas as promessas de liberdade?
Tomarás nas tuas mãos, com serenidade e coragem,
aquilo que, numa hora única, te prometem?
E agora, povo português?
 


Jorge de Sena

domingo, 15 de abril de 2012

Hoje não é...

o dia internacional do beijo


... mas como eu gosto de beijar!!


terça-feira, 10 de abril de 2012

piloto automático

Ligo o piloto automático. Este vem com instruções. Depois de mais de dois meses, tenho finalmente tempo para saber como se põe a funcionar algumas daquelas luzinhas do carro. Ligo o piloto automático - expressão muito mais significativa que um qualquer cruise control -, vou em piloto automático. O carro atravessa a ponte, pouco trânsito, o rio manso, tiro o pé do pedal e estranho. Depois deixo-me ir. E ele vai. Eu deixo-me ir e a vida vai. Comendo quilómetros ou dias. Eu em piloto automático. A minha vida em piloto automático, sem acelerações nem travagens, seguindo constante - morna - ou tranquila? -. Se eu fosse capaz?! Dizia eu que tenho andado em piloto automático... sim e não. Houve um momento que, perante uma rampa, acelerei dando o que devia provocar o impulso, o embalanço, mas na subida fui fechando os olhos - que é como quem diz o coração -, ou seria na descida por receio da atracção do abismo? Travei, apenas um toque, que da máquina, apesar de nova, já se conhece o funcionamento. Ligo o piloto automático, da breve aceleração, da leve travagem, parece não haver sinal; ficou para trás mais um e outro quilómetro. Um fio de estrada.
Ligo o piloto automático, sigo em frente, ou numa direcção que assim parece, uma recta sem horizonte. Sigo tranquila ou morna, deixando rastos invisíveis no chão. Como se levitasse de mim. Passo a outrém o controle que por vezes tanto me tem descontrolado. Antes assim, por agora. A viagem é longa ... tem sido penosa, curvas e contracurvas... a viagem é longa, ou quão longa será...
Sigo e penso: sorte ao jogo, não... sorte à condução, azar aos amores. Devia era ser tão boa numa como na outra, assim nunca teria tido acidentes no percurso*.
*Prova de que não são (necessariamente) os acidentes que nos ensinam a conduzir melhor.