sábado, 31 de março de 2007

Com o tempo vem a relatividade do tempo. Não aquela relativização das convições absolutas adolescentes em que o mundo quase acabava todos os dias por haver ou não haver aquilo em que se acreditava. Vem a lucidez de que acaba e que por isso mesmo existe. Ou que somos nós próprios a ter de fazer para existir. Num mundo interior - é esse o que pode mudar; o resto é apenas uma possibilidade ou potencialidade... ou ténue consequência desse outro mundo.

atravessa-se ruas e praças e pessoas.
atravessa-se lugares onde se faz e pensa.
se ri e chora
cruza-se amores e outros afectos
e raivas que se diluem
por o infinito espaço ser demasiado pequeno

troca-se o impulso pelo deslumbre
de todas as imagens
de humanas paisagens

não se corre atrás nem à frente. talvez se corra apenas, ou caminhe, ou sua qualquer ilusão.

quanto mais perto maior
a viagem
de que tamanho é o mar?
e a sua idade?

De olhos abertos na lucidez de que nada se vê
No desejo de nada ver
senão entes entretidos a construir quaisquer castelos de espuma
nas areias duma maré vaza

quinta-feira, 29 de março de 2007

a leste

sempre tudo de novo...

mudando a hora, o rio revela-se mais matinal, espreguiçando-se por entre margens e mouchões, navegando na névoa de negros navios

(fotografias tiradas às 6h38m)

quarta-feira, 28 de março de 2007

A minha gata indiferente à leitura, amarinha por mim, exigindo colo. Consinto, qual mãe culpada de estar todo o dia fora de casa. Sorrio ao vê-la satisfeita, saciando a sua afectividade. Meigamente vai picando-me com as unhas e ronronando.

terça-feira, 27 de março de 2007

regresso a

Coimbra, pelas mãos da morte. um pouco da minha infância e adolescência que parece ir... laços familiares, não por ser apenas família, mas por haver afecto profundo. ternura. passado. vivências de risos e canções. de natais e histórias contadas de outras infâncias em tempos idos. quando as crianças brincavam na rua com bolas e bonecas de trapos. quando dois irmãos também subiam escadas de sotão e implicavam um com o outro e havia ratazanas velhas que iam morrer junto às lareiras das pessoas que habitavam as casas. e as madrinhas que viviam na casa que também acolhia nas festas da rainha santa todos os parentes da aldeia. os sete filhos-crianças da vizinha viúva, moços que se tornaram honrados, e a pouca comida que ainda se repartia por quem ainda menos tinha. e começar a trabalhar em terna idade e a paixão pelo teatro - logo hoje, seu dia mundial - e a 'responsabilidade' noutras estórias de amor que começaram quase em palco. a prisão dois anos no Porto, por querer justiça e liberdade. a voz poderosa que finalmente se cala. mas ecoará na lembrança dos que o amavam. pedaços de memórias. deles e nossas. foi no abraço sentido que veio o choro incontido, quase infantil, com relâmpagos dos momentos de férias e brincadeiras e cumplicidades. embora parecendo quase esquecidas, reencontramo-las em adultas mãos dadas. como se as tivessemos dado ontem. porque esse nosso ontem está em nós, mesmo nem pensando que estava assim tanto.
hoje foi um dia triste. e na nossa tristeza soubemos sentir a alegria dos afectos.

foi por acaso ou em vão que há quase um século um homem e uma mulher se amaram? vamos deixar esse amor esvair-se no tempo como se não tivesse existido? juntemos as crianças. elas sabem brincar.


sábado, 24 de março de 2007

escrita

a escrita da primavera deveria saber a flores silvestres e cheirar a água fresca brotando de uma grande pedra branca, deveria ser pele e dedos que redescobrem novos veios.

por escolha, constrangimento e quase obrigação, a escrita vai ter de sair essencialmente das ideias.
há animais feridos que atacam
para que a sua dor se estenda aos outros
saudáveis

o elefante morre longe das respirações do olhar
buscando a bruma dos amores
imperfeitos

sexta-feira, 23 de março de 2007

dar

porque é que quando se quer dar algo a alguém tem de se dizer sempre que é da nossa parte?
não se pode dar só porque se julga que é bom para o outro, que ele vai gostar?
porque que é que as 'dávidas' sem autoria podem ser tão mal recebidas?
às vezes ter de manifestar a 'autoria' retira a quem dá a liberdade e a espontaneidade do dar. nem sempre é importante quem dá. só o dar e o receber.
sem segundas intenções. sem desconfiança.
só o acto. e o receptor. sem emissor.

terça-feira, 20 de março de 2007


Que importam as flores e as árvores, o fogo e a pedra, se não amo e não tenho lar? É preciso ser dois – ou, pelo menos, ai de nós, ter sido dois – para compreender um céu azul, para invocar uma aurora. As coisas infinitas, como o céu, a floresta e a luz só acham nome no coração daquele que ama. A brisa das planuras, na sua doçura e mansidão, é o eco de um suspiro enternecido. Por isso, a alma humana, enriquecida por um amor eleito, anima as grandes coisas entre as pequenas. E pode tratar por tu o universo, porque conhece a embriaguês humana do tu.
Gaston Bachelard

(do prefácio à tradução francesa de Ich und Du [Je et Tu], Martin Buber)

segunda-feira, 19 de março de 2007

Quarto com vista para...

a Primavera
E de repente vi as olaias em flor. Olaias como a que havia no quintal da minha infância. A minha árvore.
Sempre sonhei fazer uma casa nessa árvore. Ficou pelo sonho. Mas é como se tivesse existido. Quando subíamos à árvore, de grossos troncos, e nos deixávamos ficar lá no cimo, sentíamos numa casa, invisível, mas tão real como as nuvens cheias de animais e seres fantásticos que olhávamos cá de baixo.
A olaia em flor, símbolo da minha primavera.

O facto de passar os dias fora de casa fez-me espantar com já todo aquele lilás rosáceo no balançar do flor-escimento.

já está vindo a Primavera

domingo, 18 de março de 2007

ao longe, o Tejo...




Há certos dias em que é urgente ir ter com o rio.
A necessidade de respirar aquelas águas surge premente, e não basta apenas a breve passagem de todas as manhãs.
Com o Tejo a dois passos, por vezes quase que corro para ele à hora de almoço; nos dias em que é preciso esquecer momentaneamente tudo e somente olhar, escutar o marulhar contra as pedras do cais, e lá atrás a cidade e as gentes e a confusão que os humanos geram.
Depois, regresso limpa e tranquila, e o resto da tarde de trabalho sai deslizando.

sábado, 17 de março de 2007

my radio stars

Nunca vou ser capaz de fixar nomes. A memorização só advém pelo significado. E do carácter único que se dá à coisa nomeada. E mesmo assim há circunstâncias ou particularidades só raramente inultrapassáveis. Mesmo com músicas que já ouvi dezenas de vezes, pergunto(-me) sempre: quem canta isto?
É mesmo um bloqueio, até porque quando ouço o nome, digo ou penso: ah, pois é!
Deve ser trauma de infância; meu pai propunha frequentemente: "dou um doce a quem souber de quem é". E no meu conhecimento musical infantil lá ia acertando: Bach, Haendel, Mozart, Schubert... mas nunca recebi o tal prometido doce.
Hoje acho que acerto menos do que com aquela precoce idade. E como o gosto se alargou, ainda me sinto mais ignorante. Além de ter um grande problema se penso comprar um CD.
A rádio tem-me salvado nesse aspecto: é só ligar o botão. Mas dado o panorama cada vez mais massificado-histérico, tenho-me voltado para as rádios alternativas.
à noite, depois de chegar a casa, ligo-me ao silêncio e aos sons, sem querer saber de nomes:

- à segunda-feira: vidro azul

- à quarta-feira: íntima fracção
(este fixei: Scott Walker em Just one smile)

- à sexta-feira: como no cinema

e claro, sempre que posso (senão há sempre o podcast), as boas conversas

ao sábado: quinta essência
[e se o entrevistado não for de 'minha preferência', há sempre outros motivos para ouvir(-te)]

durante a semana, ao fim da tarde: pessoal e intransmissível


E a última descoberta: miss-tapes

do amor § 2

É o regresso da Primavera.

Fechar os olhos. Sentir o sol na face, o calor no corpo ainda pouco destapado, e talvez haja uma leve brisa tocando-nos a pele. Um sorrir instintivo. Como se sorrissemos ao amor.
E espreguiçar como que abrindo os nossos braços a um abraço. Quente.

sexta-feira, 16 de março de 2007

nocturno

já há dias tinha pensado, ou melhor, sentido. hoje mais uma vez, provavelmente como consequência do almoço, condicionado no tempo entre picagens de ponto.
que saudades de noites infinitas, daquelas que sob uma brisa amena, horizontes descobertos, sem ponteiros de relógios, se vai desfiando conversa. primeiro, trivialidades, depois, pouco a pouco, cada um vai desvendando, penetrando em si, descobrindo-se e partilhando, devagar, entre falas essenciais, escutas atentas e silêncios que absorvem e entendem empaticamente o universo do outro.
noites de intimidade.
noites porque só no silêncio da noite é que as palavras assumem uma importância, um sentido, uma forma/conteúdo que é incompatível com a agitação do dia. são os sons nocturnos, a luz fusca que visibilizam o que não é imediato. como uma viagem ao interior de cada um, de cada outro.
saudades de viajar assim.

ao almoço § 2

comer muito mais do que é costume, e no entanto, saber a pouco.
saboreia-se a amizade. devora-se a distância.
quem dera fazê-lo todas as semanas, talvez assim a conversa ficasse mesmo em dia.

quinta-feira, 15 de março de 2007

ao almoço

Apetece demorar mais um pouco a esta mesa de café, frente a uma parede de tijolo 'burro'; em volta, vozes, estilhaços de conversas, vidas que se juntam quase todos os dias neste lugar, mais ou menos à mesma hora. Comigo vem almoçar o entusiasmo da manhã, como tem acontecido tantas outras vezes neste passado recente.
David e Golias. Assim somos nós, assim é este nosso projecto. Mesmo se por vezes o tapete parece sair debaixo dos pés, se o ritmo da passadeira acelera, ou se os mecanismos da engrenagem tentam emperrar, o ânimo, a paixão não diminui, antes se amplia, no fazer melhor, no envolver de outros potenciais participantes, no estímulo da troca e desenvolvimento de ideias... e pouco a pouco na sua concretização. Porque também depende de nós, da nossa capacidade de empreendimento, de acção, da vontade de contribuir para um colectivo - é um individual que atinge o seu pleno sentido na partilha, no comunitário.

terça-feira, 13 de março de 2007

voltar?!

a porta aberta.
sem hesitações, sem perguntas.
foi bonito, dizem. sorrir contente. tranquilamente.
sem expectativas.

foi ao octogésimo quinto passo, depois mais quatro, falta um
de outros.
passo, degrau ou simples respiração.

é no feminino que se desnudam dos véus. uma qualquer essência.

não é promessa ou desejo

voltar a fechar os olhos. nada mais. nada e inspirar profundamente.

terra...pouca.


Na estação de comboios surge Anna Karenina. Caminhando paralelamente. E não apenas pelos carris entrecortadas pelas traves, ou ritmos de destino(s). Apanhamos uma qualquer linha pensando que comprámos o bilhete certo. Durante a viagem olhamos pela janela e vemo-nos em paisagem desconhecida. Ali no meio de um nada. No centro de um qualquer mundo. Podemos deixar-nos ir. Podemos saltar.

Se nada sabemos...

Talvez haja um qualquer sinal verde.intermitente.vermelho. Ou numa cabine altaneira, um comando longínquo de agulhas que lhe atribua um outro rumo.

Ao correr do cais, um passo.

domingo, 11 de março de 2007

utopia?

"Ensino para que se aprenda a ver com os próprios olhos, a intervir com as próprias mãos, a entender..."

Mário Dionísio, Autobiografia, Lisboa: O Jornal,1987
já não chora como estrela perdida do seu lugar na galáxia
chora como um menino : não que lhe tivessem tirado um brinquedo, ou sequer ralhado
chora como menino : viu pela primeira vez:
não é torrente; só. única.
desprendendo-se fugidia sem querer nem saber
em espanto . impacto em
ondas com-centro por uma pedra caída no lago : com-fundo

sábado, 10 de março de 2007

da vida e da obra § 1

Morreu o poeta e ensaísta Fernando Alvarenga (1930-2007).

(Que eu saiba nenhum orgão de comunicação social nacional deu conta disso; apenas na sua terra: aqui.)

Ficam os seus livros de Poesia:
"Hoje na Madrugada", "Do Konjeve a Nzinga-a-Cuum", "Dizer País" (com David Mestre), a antologia "25 Poemas de Fernando Alvarenga", "Meus Cantos de Ainda", "A Mãe por um Menino", "O Íris da Cinza", "Na Gávea de um Lírio", "Treze Poemas para a Mãe".

E a sua obra ensaística:
"A Arte Visual Futurista em Fernando Pessoa” (Editorial Notícias, Lisboa, 1984)
"A Socialização da Arte em Fernando Pessoa” (AJHLP, Porto, 1985)
"Os Afluentes Teórico-Estéticos do Neo-Realismo Visual Português" (Afrontamento, Porto, 1989)
"A Arte nas Estéticas de «Orpheu»" (Editorial Notícias, Lisboa, 1994)
"José Régio Perante o Neo-Realismo" (incluído parcialmente na obra colectiva “Ensaios Críticos sobre José Régio” – Edições Asa, Porto, 1994)

Foi colaborador em publicações como:
Colóquio-Artes, Mealibra, O Escritor, Boletim do Centro de Estudos Regianos, A Voz de Ermesinde, O Correio do Douro, Jornal das Aves, Jornal de Notícias, Jornal de Letras e Artes, A Província de Angola, Prisma, Diário de Luanda, Convivium, Planalto, Convergência, Ecos do Norte, Diário Popular e República.

sexta-feira, 9 de março de 2007

do amor § 1

por vezes, o amor devolve o som que ecoa pelas planícies, pelas várzeas.
outras... recolhe-se em bicho de búzio.

quinta-feira, 8 de março de 2007

lugares do poder

em apenas noventa segundos, os impérios do Oriente Médio... nos últimos trinta séculos:

quarta-feira, 7 de março de 2007

há 20 anos

Foi sob estas tábuas que soube da morte de Zeca Afonso. Lembro-me... era noite e ouvia rádio e, com 99,99% de probabilidades, lia. Do andar debaixo, vinha o silêncio dos sonos da família. Como muitas outras noites na minha mansarda privativa... ou simples e mais propriamente, o meu sótão. A casa de exílio, de refúgio, desde precoce adolescência até à saída para a vida 'adulta'.
Deste lugar... dele, falarei mais, um dia.
Agora, vinha a propósito do Zeca. Nessa noite, nesse sótão, ouvi a notícia no silêncio da noite - quando a rádio era tranquila e nos falava -. E, como nunca tinha acontecido por alguém que não conhecia, chorei.
A morte tinha saído à rua... por um poeta-cantor.


Poema

I

Sobre os meus olhos
em ponto negro,
de cal pintados

-há dois corvos sentados


IV

Rio d' águas passadas
Meu rio escondido

V

Águas claras correndo,
Meus sonhos vão indo!
- São seixos rolando! -
- São pedras caindo ! -


VI

Oh! águas que lavam
as pedras do rio,
- Que vento nos leva
no sonho vazio?

In 'Via Latina', Ano XVI, nº 78, 28-2-1958, extra-texto

Hoje entre os "meus" papéis encontro um com poemas de quando era um jovem poeta.
Tinha deixado passar o aniversário da morte sem qualquer referência. Mas há pessoas que não precisam de data certa para serem homenageados. O que nos deram é já uma celebração.

terça-feira, 6 de março de 2007

era

era] uma vez
era] uma voz
era] ... voz humana

era] rio escorrendo no rosto
sombrio do cipreste

domingo, 4 de março de 2007

macro-croma


Experimentando a máquina nova numa noctívaga ida a Setúbal.

sábado, 3 de março de 2007

Traços

Traços de luz numa noite de eclipse
(era a lua que queria captar... das tentativas ficou isto...
"torrentes douradas"...
não me perguntem como aconteceu )



Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.

A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.

Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

Rabindranath Tagore (1861-1941)
respiro os últimos raios de uma lua inteira. ignoro todos os ruídos exteriores e interiores.
é bela. bela e redonda. círculo de magias milenares. fonte das marés de meu e d' outros mares. o início e o fim de um nome.

lu_
_a

nome guerreiro

depondo sempre as armas aos pés de quem se prepara para lutar. não há força que valha a guerra. resistência não é guerra. a lua não se transforma na terra, nem o sol em lua. mesmo que a penetrem, a esventrem, a cravem de bandeirinhas com listas ou estrelas.

não há revolta nem mágoa. a dor passa sempre.

já vos falei da dor?

a ânsia pela claridade arrebata.

aqui me tens. nada mais posso fazer.

não é cansaço. ser nunca cansa. como a luz.
alegria / melancolia / paixão / utopia
quatro das múltiplas fases de luas

na sua plenitude
a Lua é crescente e decrescente,
toda e nua.
deixo-me levar... são os pensamentos nas suas últimas consequências até (quase) a uma e só consequência. encenação não fosse o sentimento último. senão fosse por aquilo que move tudo. amor e solidão. no seu significado mais abstracto. mais intrínseco. encenação mental. mais verdadeira que todas as outras, as de palco visível, mais ou menos reais e construídas. a verdade que não se vê. porque a dor não se vê. talvez já nem exista. somente o corpus de sangue e àgua. a dor como a sombra interposta de um sol. nada é. apenas oculta a lua. nada mais. eclipse. lua cheia. e o mar que afoga.
o cigarro que conscientemente mata. devagar demais.