t. estava ali à minha frente. de pé. quase surgida do nada. olhei-a sem perceber de imediato se estava triste ou serena. aliás nem mais tarde, recordando este episódio, saberia dizer da expressão do seu rosto. apenas entrevi a da sua alma. vertical, olhava-me nos olhos, os braços delineavam o seu tronco, e as suas mãos, uma prolongava-a em silêncio, a outra calava-a nos dedos fechados. dedos apertados à volta de um maço de papel. um maço nem grosso nem fino. um maço, não, dois, agora perfeitamente distinguíveis pela diferença de cor dos laços que os dividiam.
por entre dedos e um certo amarelado do papel, duas fitas, quatro pontas, duas cores de dois tons, quatro cantos de folhas dobradas. cantos de outras tantas vozes. cor rosa tom esbatido e um verde matiz turquesa. em esbranquiçados pelas mãos que tanto sonharam.
o braço da mão vazia move-se até se juntarem as duas mãos em torno daquele volume. e os dedos separem aquela unidade numa divisão natural, talvez por uma certa perturbação, talvez por intenção. estende as mãos em desejo de esvaziamento e ouço:
quero que fiques com elas: quero ficar longe delas.
tento tomar com as duas mãos os dois maços que se separaram. agarro um facilmente. o outro, o outro fica entre as nossas mãos. não forço, apenas a olho. poderia perguntar, perguntar qualquer coisa que fizesse sentido mas a leve resistência que senti, não o permitia.
em silêncio, olho-as. olho-a. olho para as que tenho na minha mão, por já não doerem tanto
não sei o que fazer com elas: guarda-as.
guardo-as?!
guarda-as! queima-as! publica-as como se fossem tuas! ou duma tia-avó solteirona do século passado. e lentamente: ou de há dois séculos, seria ridículo, nem era crível escrever-se ainda assim. assim…
as nossas mãos continuam presas ao outro maço, sem saberem o que fazer. também elas sem o saber.
não quero ficar longe delas: não posso continuar perto: eu e elas: sós.
olhando um vazio, esboça uma espécie de sorriso. e puxa as folhas para si, encostando-as ao seu corpo, como se a hesitação fizesse com que se abrisse e as tragasse. quase sofregamente.
liberta, agarro nas outras cartas esmaecidas atadas, guardando-as no meu colo.
cativa, agarra no outro maço de cartas esmaecidas atadas, guardando-as no seu peito.
cúmplices em dois sorrisos breves, íntimos, em duas bocas fechadas, compenetradas, desmentindo a quietação:
e agora: o que é que eu faço?!
Maio 2007