Tinha este poster na parede do meu quarto de criança. Deste dia ficou em mim o sentir da alegria vivida entre as pessoas. Era pequena demais para compreender a dimensão político-social desse dia, mas entendi, de algum modo, a dimensão socio-afectiva desse e dos dias que se lhe seguiram. Lembro-me de saber que não se podiam cantar certas canções na rua – um dia estava no quintal a brincar e a cantar canções que cantávamos em casa, nas viagens de carro, e a minha mãe manda-me calar, a mim e a minha irmã, porque nos podiam ouvir. Sabia dos LP´s escondidos no louceiro da sala, lá no fundo, atrás da pilha dos pratos. Zeca Afonso, Luís Cília, As canções heróicas musicadas por Fernando Lopes Graça. Sabia que havia livros proibidos, sem saber o que continham. Sabia que havia presos políticos e o que estavam em Caxias e no Aljube, como o meu pai tinha estado, e sabia dos interrogatórios e da ‘estátua’ e dos pés inchados e das luzes a incidirem sobre eles quando queriam dormir. E no dia 25 de Abril de 1974, lembro-me tão bem, ficou marcado; não tenho dessa idade, muitas recordações tão nítidas como as desse dia. Nesse dia, ninguém saiu, e ficámos o dia todo de volta de um rádio, daqueles grandes, antigos, a ouvir. Recordo o estar sentada no chão, encostada às pernas de meu pai sentado no sofá, atento, expectante. também eu estava atenta, escutando com alma de criança, tentando entender, com entendimento de criança. Toda a manhã, todo o dia. À noite, a televisão a preto-e-branco. Muitos nomes. Confusos. Fardas. Discursos. Grândola – emoção sempre, ainda. O Carmo – ingénua alegria. Partilhada. Sentida. E depois o 1º de Maio, especialmente o de 75, no estádio 1º de Maio. Cheio de gente, no meio da multidão, vi pouco, era pequena, de idade e de altura. Só anos mais tarde me apercebi dos conflitos subjacentes que ali estiveram. Mas o que resta em mim é a lembrança de uma fraternidade, um sentimento de semelhança ou de igualdade entre as pessoas, um olhar aberto e sorrisos para desconhecidos, a ausência de medo, como se tudo pudesse ser possível. Mais do que a liberdade, afinal já cresci na dita, o que ficou dessa época, foi esta imagem de uma ingénua alegria partilhada e de esperança. Nem eles nem eu (ainda) fazíamos perguntas, era como um sonho. E o que importava era os sonhos. Ainda hoje, há uma espécie de comoção em mim ao ouvir as canções dessa época, ao ver as imagens de Abril. Hoje com um outro sentir, ainda permanece algum desse sentir, utópico, quando tudo ou muito mudou. Ainda bem que estive lá, que de algum modo vivi e senti esse dia…
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