quinta-feira, 22 de abril de 2004

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a espera V

(continuação)

Enquanto o riscava, rasgava, levantou-se da mesa. no balcão pediu a conta e pousou duas moedas em cima da superfície vidrada. Obrigada. voltou-se sem esperar troco. antes de ultrapassar a ombreira da porta, olhou para o interior do café, para a mesa onde tinha estado sentada. Viu uma mulher nova, de olhar azul-verde fitando-a. Fitou-a fixamente também, durante uns instantes. Saiu, recebendo a brisa fresca do anoitecer no rosto, no corpo. apertou o casaco e começou a caminhar. partindo daquele sítio da espera, como querendo deixá-lo para trás, rasgando-o, riscando-o. avançou resoluta até à esquina, esquina que dobrou. aí olhou automaticamente para o lado contrário da rua que percorreria. virou o corpo e apercebeu-se que naquele olhar de relance para o outro lado da rua, vislumbrou um vulto. uma sombra de vulto. semelhante à da figura esperada, ao desejo da espera. hesitou sem parar, sem olhar para trás. sempre caminhando. Em pensamento quase instintivo pensou. não. ele saberá onde me encontrar. se é ele. encontrar-me-á. Parar ali significaria não acreditar na impossibilidade de um sonho sonhado a dois. Parar seria admitir um sonho sonhado somente por ela. sonho dela?
Na mesa do café a mulher de olhar verde-azul sorri, num esforço contido de um riso. sonho dela ou sonho seu? Ela, criação de si. criador transmutada em criatura, criatura fundida em criador. Espera de um encontro inexistente entre ela e o inexistente. nem dela-outra nem dele. não entre eles-outros, sonhados. por ela, dela ali. no presente. encontro não marcado senão em um sonho desejo de alguém-outra que cria, num admitir do impossível sonhado a… um, a dois? pouco importa. pouco importam os sonhos, não é mesmo? permanecem em sonho. na sua própria essência. olha para fora, o dia ainda está claro, luminoso, iluminando as matérias de um modo solar, clareando corpos feitos do dia. levanta-se da mesa. no balcão pede a conta e pousa duas moedas em cima da superfície vidrada. Obrigada. volta-se sem esperar troco. antes de ultrapassar a ombreira da porta, olha para o interior do café, para a mesa vazia onde tinha estado sentada. olha-a e sorri. Sai, recebendo o morno calor do dia, no rosto, no corpo e começa a caminhar. olhando em frente.
engano maior…?


.the end
[qualquer semelhança com a irrealidade… blá-blá-blá… é mera coincidência]

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