terça-feira, 20 de abril de 2004

a espera III

(continuação)

aquele mundo, aquela espera. que significava afinal? não o saberia dizer em concreto. como falar do mundo dos sentimentos com palavras que os traduzem tão precariamente? mesmo auscultando-se, sentindo-se, sentido a pulsação, os músculos, quase as transmissões sinápticas nervosas, só as podia descrever como alterações, talvez medíveis num qualquer aparelhómetro. sabia que não era um sentimento amadurecido, estava na pele, um frémito que a percorria por vezes, outras um sentir suave, de sorriso nos lábios. e por vezes sentia que estava mais entranhado, num tocar fundo, como se nascesse dum cerne qualquer. porque haveria de classificar? porquê a necessidade de sempre se afirmar coisas? acredito, não acredito. é verdade, é mentira. é branco, é preto. as pessoas muitas vezes não entendiam que as suas afirmações não eram taxativas. eram seguras talvez, ou davam uma impressão de segurança, de afirmação forte, mas poucos sabiam que a certeza era no momento, porque precisamos de ter certezas. não está o mundo sempre em movimento? mas não lhe pedissem também para crer naquilo que os outros diziam, só por lho dizerem. Ouve: diz adeus à senhora. Estava a seguir com os olhos e com um sorriso, aquela mãe e aquela criança, que partiam juntamente com aqueles seus pensamentos. a criança acena com a mãozita, timidamente. Como a criança. não, não pode fazê-lo. mesmo que às vezes seja conveniente, não pode. é uma forma de resistir. sempre o foi. ou uma forma de se tornar gente. A criança antes de sair a porta do café ainda olha mais uma vez para trás, mesmo puxada pela mãe, olha na outra direcção. para dentro. não sorri. olha. O que é a verdade do sentir? não que pergunte. apenas coloca a questão. seria uma resposta tão banal ou tão circular. aquilo que se sente. terá nome? é preciso ter nome para existir? para ser? podia ter outro nome qualquer, cor, verbo, barro, pranto, templo, fogo, solar, dia, medo, pétala, estame, laços, desoculto, lunar, lágrima, magia. cada um deles. todos. tudo. algo sem nome. Tudo ali no café tinha nome, e os seus olhos nomeavam com o olhar. já tinha percorrido, na espera, todas as vitrinas, quase todas as garrafas expostas, todas as chávenas e copos de muitas formas e tamanhos, mais caixas e caixinhas coloridas, uns quantos bolos e pastéis que restavam da hora do lanche. tinha observado a vestimenta dos empregados, os seus gestos, os seus movimentos, a caixa registadora antiga decorando o balcão, as cadeiras, as mesas, a louça suja que permanecia por minutos em cima delas, os clientes que davam ou não pela sua presença. como um filme que passava por detrás de si, ou à sua frente, por detrás dos seus pensamentos. registando num outro plano, no plano do olhar. aparentemente superficial, sem história ou memória. Tudo ali tinha nome. E o que ela sentia, tinha? E o nome daquilo que ele sentiria, teria forma? talvez por não o ter é que demorava a vir? ou por ter? o nome do que ela sentia, um desejo de gesto, de mãos, de abraço. de silêncio neste desejo. na demora, na espera permanece a ternura, aumenta a saudade, do olhar. sentiu-o perto. a umas ruas de distância. apenas. e na ternura, na proximidade, a inquietação aumenta, de forma diferente. ainda é dúvida do encontro. sentiria que ela estava à sua espera, ainda? que não fosse isso que o fizesse vir. ou só isso. que fosse a consciência ou a respiração do seu sentir que encaminhasse os seus passos na direcção daquele lugar. Era tão fácil encontrá-la. e permanecê-la? Via através do vidro da janela, pessoas a ir e a vir, passando de lá para além, a caminho de um qualquer destino. Este vaivém exterior foi quebrado pela percepção de uma presença em movimento muito lento, perto dela, perto do seu corpo. estremeceu.

(continua…)
[mais um tempo de espera…?]

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