segunda-feira, 19 de abril de 2004

a espera II

(continuação)

Aquela espera não seria em vão. qualquer que fosse o desfecho. Não importa o fim, esse, se calhar, é demasiado conhecido ou supostamente. o importante é o caminho, os encontros, os olhares, as vozes. Não iria telefonar, para quê? sentia que nada de grave lhe estava a acontecer. sabia que era opção sua. podia até estar retido, ocupado, mas quando se deseja, quando se quer, todos os impossíveis se tornam possíveis, todos os impossíveis que estão na nossa mão. só o impossível de nós mesmos é impossível. Sempre foi boa a esperar. conhecia imensas desculpas. imensas ilusões, dela, dos outros. enganos, também, e porque não dizê-lo, mentiras. afinal, viveu tantos anos com alguém que mentia tanto. se antes já julgava que tinha instintos detectivescos, a partir daí, sorria quando apanhava mais uma. nem ia à procura, era só ver, relacionar e ela surgia tão límpida, tão infantil. têm as pernas tão curtas. é tão difícil alguém não entrar em contradição. mas não confrontava, cada um faz aquilo que acha que deve fazer. vai-se entranhando na forma de ser. somos também aquilo que dizemos, aquilo que pensamos, aquilo que agimos. aceitou as mentiras, sabendo-as mentira até ao dia, até aquele dia. não, não aceitou as mentiras, aceitou quem as dizia, entendeu as razões interiores que levavam à mentira. Não que pensasse verdadeiramente que era uma situação idêntica. mas os indícios podem ter tantas leituras diferentes, opostas. e o passado também marca, quer se queira quer não. Pensava nos impossíveis dele, não o conhecia assim tão bem, hipotetizava tanta coisa, supunha, é o que acontece quando se tem apenas vestígios. sim, vestígios, fragmentos. e nestes surgem, encerram-se enigmas. precisa-se mesmo que não se queira, de uma certa ordem, de um quadro qualquer. Fragmentos que quando se tornavam mais concretos, mais sentidos, havia sempre alguma coisa que o fazia desaparecer. a distância. se não era uma natural distância física, havia uma outra. sem origem, sem especificação, sem concretude. simplesmente havia. constantemente. Sentia desassossego. como de outras vezes em que ficava algum tempo sem lhe falar. um desassossego suspendido quando falava com ele, nas noites longas de conversa, quando lhe ouvia a voz calma, tranquila. sabia então, nesse momento, que precisava do seu olhar. que faltava. ali. E na inquietação, o que fazia? ficava quieta, corporalmente quase imóvel deixando a imaginação ou os devaneios ou outra coisa qualquer seguir um caminho autónomo. Não era inacção. podia agir, mas apreciava as efabulações, o curso do pensamento a ir, a ir, sem verdades nem erros, até que, por vezes pensava encontrar algo de mais provável. não, não se agarrava rigidamente àquele. pegava nele e embalava-o, tentando ver se outros fragmentos do pensamento se encaixavam como num puzzle. havia peças que sim outras não. nada era definitivo, nem em si nem no outro. O café enchia-se outra vez, mais uma vez. era a hora do lanche. sentou-se uma mãe com uma criança, na mesa ao lado. A sua atenção concentrou-se na voz da criança, faladora, curiosa, indagadora. A criança apercebeu-se que estava a ser observada e ficou em silêncio. olhou, um pouco de lado, retribuiu o sorriso que recebeu. continuou a falar com a mãe, primeiro a olhar para a senhora da mesa ao lado, depois esqueceu-se. como todas as crianças, entrou no seu mundo outra vez. Ela, à espera, reentrou também no seu mundo da espera. aquele mundo, aquela espera. que significava afinal?

(continua…)
[pedimos desculpa pela espera… segue dentro de momentos]

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