quarta-feira, 21 de abril de 2004

a espera IV

(continuação)

o empregado inclina-se sobre a mesa. posso? sim, retira a chávena e o copo. Ah! um copo de leite, por favor. Tinha-se esquecido de há pouco ter notado os empregados a olharem para aquele lugar. demasiado tempo. pouco consumo. a realidade, pois é. um copo de leite saberia bem, estava com sede. Sede. sede de se dar, de ser recebida, de receber. não era necessidade. era também temor. era, simplesmente. antes de ser necessidade, antes ou depois de ser temor. tremor de ser importante, de se tornar necessária, fatal. de ser tornar necessário, essencial. Obrigada. Bebe meio copo quase de um gole. a frescura. a simplicidade. líquida. sorriu. passou a língua pelos lábios, desfazendo o contorno branco deixado pelo leite. desejou olhá-lo com alegria. com aquela alegria que se sente em momentos raros. comunhão na alegria efémera. onde esse olhar rasgado transporta para um outro e momentâneo mundo. simples. quase inocente. talvez o que esperasse fosse um pouco desse mundo. um mundo que ninguém lhe poderia dar, mas que poderia compartilhar. um mundo impossível possível por breves instantes ao longo de um tempo de olhares e de lágrimas. de lágrimas. tocadas ao longo da noite melodia sabor dança. sendo a sua canção, sendo canção. Por vezes tinha medo que os outros levassem demasiado a sério os seus sonhos sérios, de os assustar julgando exigir-lhes algo de impossível. de os enganar com desejos de algo que ela sabia impossível. tão possível no impossível. tão impossível no possível. por isso um dia tinha-lhe pedido, diz-me sempre, diz-me sempre o que sentes. para que todos os desencontros fosse apesar de tudo um encontro. E estava ali sem saber, às vezes julgava que lhe bastava sentir para saber, outras que estava tão longe de o saber ou de o sentir. Não era exigir saber, se nem isso podia ter de si mesma, como o poderia pedir sequer? só gostava ou precisava de sentir, como se sentia a si mesma. E de repente apeteceu-lhe rasgar estes pensamentos todos, como se estivesse a dar-se demasiado, como se tivesse medo que a tomassem demasiado. não, não era isso ela queria. o contrário o que seria? quereria? um despojamento, um desprendimento do sentir, uma anulação do afecto. Este pensar já era uma incisão na espontaneidade, na alegria de ser possível, era uma fractura na entrega, não renunciando a ser apenas ela. por vezes pensava que ele acreditava que já a possuía de algum modo, que a possuía através do olhar e isso bastava-lhe, bastava-lhe na ilusão de uma presença que jamais poderia ser mágoa, a posse do olhar não fere, não dói, é manipulável pelos sonhos como os que ela elaborava, ali. espaços possíveis com corpos impossíveis. que engano maior o de sermos tomados pelos nossos próprios sonhos, sonhando o sonho julgando estarmos despertos. De repente quis rasgá-lo, riscá-lo por ser pensamento sonhado, por ser sonho pensado, sentimento estranho que se entranha, guardá-lo na memória daquelas noites e as noites seriam aquelas e outras que não guarda ainda na memória. desejou satisfazer-se com o insatisfatório, preencher-se de um pouco estendido, amplificado em si. Desculpe, menina, vamos fechar. Aquela voz vinda do irreal porque o real estava ali. Diga? o empregado repete a frase e ela olha para fora, está anoitecendo, as luzes dos candeeiros já se acenderam, iluminam as matérias como se de outras fossem, aclaram corpos feitos de noite. Olha e, com dificuldade, contem o riso. um riso interior quase extravasado. denunciado.

(continua…)
[brevemente…num lugar perto de si]

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