sexta-feira, 26 de março de 2004

estrada em construção…



- Aquela rapariga, aí atrás, deixou cair o açúcar na mesa.
- Diz?!
- Na mesa por detrás de ti, está uma rapariga que com a conversa distraiu-se e em vez de deitar o pacote no café, despejou-o na mesa.
Ela sorri, e faz disfarçadamente o gesto, mais ou menos cómico, de despejar o pacote de açúcar ao lado. Levanta as sobrancelhas, sorrindo e pergunta:
- Assim? - Como se quisesse confirmar os gestos que não chegou a ver.
Sorriem os dois, continuando a falar. Disto e daquilo, pondo a conversa em dia. Tinha recebido o telefonema dele à saída do trabalho, já noite. Ele nem se lembrava que naquele dia da semana ela costumava ficar até mais tarde. Telefona-lhe em cima da hora de jantar. Gostava de a ver. Estava em Lisboa. Mais uma vez de passagem.
Acabam o lanche. Não, não lhe apetecia jantar, não nesse dia, não com ele. Comem qualquer coisa, não era o que importa. É olhar, ver, sentir-se depois daquele tempo todo. Olha-o nos olhos, escuros, pequenos, algumas rugas de expressão, boca forte, sorriso aberto. bonito? pensa. Já não, não tanto, mas o rosto é o mesmo, aparentemente igual ao que era, ao que tinha sido. lembra-se do ditado, ‘quem feio, ama… “ e sorri. Estão conversando e aquele sorriso nem se desenquadra. É um sorriso de ternura, pelo passado, pelo presente. pelos sentires que se delineiam no percurso de cada um, pelos encontros que permanecem mesmo longe, mesmo diferentes, pelo significado que se vai alterando, construindo.
- Vamos? Saem para o frio, ela aconchega-se no casaco, e esquece-se, nem sequer se lembra, de uma outra noite em que também estava frio, em que também se aconchegou no casaco. Caminham lado a lado até ao carro. Ela fala-lhe no cansaço que sente:
- … já não consigo ficar até tarde, então hoje… só se fosse algo muito especial…
- Desculpa, não percebi. - O tom de voz tinha sido baixo, mas se calhar não tinha sido isso… se calhar não estava à espera ou… tentava perceber o verdadeiro sentido daquela frase. Ela repete, mais alto, mais convictamente. Entram no carro, e sente-se um movimento de aproximação, um gesto encoberto com o de pôr o cinto, ela já está a pôr a marcha a trás. Arranca, sem dar tempo. O diálogo continua fluido, como tantas outras vezes, por um lado até mais, um pouco mais descontraído, menos expectante. A distância é curta. Ele, nota-a,
- Estávamos perto?! Nunca mais tinha vindo a Lisboa, desde..
- Nem eu às tuas bandas… mas quando for…
- Também esperava que se tivesses ido, me dissesses alguma coisa… e que digas…
- Eu digo… com antecedência…quando for… - di-lo sorrindo, espicaçando-o, ou talvez mostrando ironicamente um certo desagrado com situações, outras.
- Mas só resolvi à última da hora… - Justifica-se, sentindo-se um pouco atingido. Um sorriso mútuo apaga qualquer mal entendido, talvez agora… talvez nunca tenha havido…
Pára o carro um pouco antes da porta do hotel. Olham-se. Começam a despedir-se. Um gesto de aproximação. Ela corresponde suavemente. As mãos encontram-se, acariciam-se, tocam-se meigamente, diferentemente, mais directamente, mais claramente. As intenções são definidas. Eram-no, com uma outra forma. Dão um beijo na face, prolongado. Mais uma frase de despedida. Mais um breve beijo, outro. Uma frase inacabada, “esses teus lábios…”, um olhar. um adeus de olhar, sorrisos duplos, não idênticos, aparentemente idênticos, um deles prolonga-se, talvez no olhar que acompanha o carro. O outro sorriso alonga-se pela rua, pela estrada em construção…

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