um dia de semana. útil, como se convenciona designar. na carruagem de comboio, climatizada, não lê, ao invés do habitual. nem se lembra de tirar da mala o livro, o jornal ou o caderno. senta-se e olha. talvez para os armazéns, para as casas, para as fábricas que se movem em sentido contrário. ela parada, fixa num exterior. só a chegada do rio talvez a tenha despertado, mas se lhe perguntassem não se lembraria dos tons cinzentos? azulados? anilados? levanta-se e aproxima-se da porta ao chegar à estação de destino. automaticamente como faz todos os dias. começa a andar, rodeada de gente que, por entre as portas da gare, se dissipam. escolhe, como sempre, o caminho mais solitário. não por ser mais perto ou mais longe. caminha por uma rua, depois por outra. e a meio dessa, um sentir estranho. uma percepção desconforme de qualquer consciência. como se não estivesse ali. fosse outra sem o ser. a outra que progredia pelo passeio não é ela. e ela? onde está? não ali. não em lugar nenhum. desmaterializada? mas o corpo continua a mover-se, a atravessar a rua. chega ao café onde todos os dias se senta e aguarda que a empregada lhe venha trazer o habitual. basta um bom-dia. diz bom-dia. e senta-se quase em frente ao balcão. em local visível. aguarda que lhe tragam o café e o copo de água. mas não é nisso que pensa. nem pensa em nada. agarra num guardanapo de papel. pela primeira vez na vida chega àquele café e agarra num guardanapo de papel. num impulso irresistível de fazer um origami. sente outras pessoas a entrar. começa a brincar com o pedaço de papel. começa a dobrar o papel. um barco. uma das poucas dobragens que sabe fazer desde a infância. lentamente começam as formas a surgir. sem dar conta do tempo. do espaço. faz e refaz. dobra e desdobra. ela? as mãos. as suas mãos. nela, só as mãos existem. lentas e determinadas. quando enfim acaba, como que desperta. todos os que tinham entrado já tinham sido servidos. do seu café nem sinal. a moça continuava a servir os pequenos-almoços. de barco de papel na mão, ainda brincando com ele, aguarda, sem fazer nenhum sinal. ao fim de um tempo, a rapariga cruza o olhar com o dela – Ah! esqueci-me de si, desculpe! quando vem com o café e o copo de água e o pousa na mesa, escusa-se mais uma vez. e ouve então uma resposta insólita: - Por acaso, eu já vinha com uma sensação estranha… de invisibilidade, e pelos vistos deve ser mesmo. – Não, não, eu vi-a entrar… mas depois esqueci-me. Sorrindo, ela reafirma: - não, a sério, hoje vinha mesmo…
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