domingo, 12 de novembro de 2006

incorporeidade

um dia de semana. útil, como se convenciona designar. na carruagem de comboio, climatizada, não lê, ao invés do habitual. nem se lembra de tirar da mala o livro, o jornal ou o caderno. senta-se e olha. talvez para os armazéns, para as casas, para as fábricas que se movem em sentido contrário. ela parada, fixa num exterior. só a chegada do rio talvez a tenha despertado, mas se lhe perguntassem não se lembraria dos tons cinzentos? azulados? anilados? levanta-se e aproxima-se da porta ao chegar à estação de destino. automaticamente como faz todos os dias. começa a andar, rodeada de gente que, por entre as portas da gare, se dissipam. escolhe, como sempre, o caminho mais solitário. não por ser mais perto ou mais longe. caminha por uma rua, depois por outra. e a meio dessa, um sentir estranho. uma percepção desconforme de qualquer consciência. como se não estivesse ali. fosse outra sem o ser. a outra que progredia pelo passeio não é ela. e ela? onde está? não ali. não em lugar nenhum. desmaterializada? mas o corpo continua a mover-se, a atravessar a rua. chega ao café onde todos os dias se senta e aguarda que a empregada lhe venha trazer o habitual. basta um bom-dia. diz bom-dia. e senta-se quase em frente ao balcão. em local visível. aguarda que lhe tragam o café e o copo de água. mas não é nisso que pensa. nem pensa em nada. agarra num guardanapo de papel. pela primeira vez na vida chega àquele café e agarra num guardanapo de papel. num impulso irresistível de fazer um origami. sente outras pessoas a entrar. começa a brincar com o pedaço de papel. começa a dobrar o papel. um barco. uma das poucas dobragens que sabe fazer desde a infância. lentamente começam as formas a surgir. sem dar conta do tempo. do espaço. faz e refaz. dobra e desdobra. ela? as mãos. as suas mãos. nela, só as mãos existem. lentas e determinadas. quando enfim acaba, como que desperta. todos os que tinham entrado já tinham sido servidos. do seu café nem sinal. a moça continuava a servir os pequenos-almoços. de barco de papel na mão, ainda brincando com ele, aguarda, sem fazer nenhum sinal. ao fim de um tempo, a rapariga cruza o olhar com o dela – Ah! esqueci-me de si, desculpe! quando vem com o café e o copo de água e o pousa na mesa, escusa-se mais uma vez. e ouve então uma resposta insólita: - Por acaso, eu já vinha com uma sensação estranha… de invisibilidade, e pelos vistos deve ser mesmo. – Não, não, eu vi-a entrar… mas depois esqueci-me. Sorrindo, ela reafirma: - não, a sério, hoje vinha mesmo…

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