quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

quarto com vista sobre…



a vontade de Viver…



“Há dois anos atrás, estava moribunda, tão dorida que tinha deixado de sentir, para não doer, prisioneira - pensava que de outros, mas era dos meus ‘ medos’, ao fim e ao cabo de mim, - tinha adiado demais, o fenecimento tinha vindo aos poucos e nem quase tinha notado - afinal era só um dia de cada vez,‘amanhã seria melhor’-, esqueci tanto - não ‘quis’ pensar, não ‘quis’ sentir - que me esqueci … de mim.
Há um ano, o mundo era eu… e cresci… tinha renascido… nasci de mim e por mim. E subia as ruas do chiado, voando sobre o mundo que redescobria, o universo estava todo à minha frente. Escalava o escadote de trinchas, rolos de pintura, berbequim, buchas e parafusos, na mão… vida nova, casa nova… o tempo afinal não tinha passado, o brilho no olhar tinha voltado, o fogo pela vida. Fazia e assumia finalmente aquilo de que gostava… apaixonava-me a estudar, a pesquisar, a pintar… e a amar… amar de novo o mundo… amar as pequenas grandes coisas como o calor do sol numa esplanada à beira rio, os verdes-relva da relva, uma pedra de uma casa, uma cor que lá estava no alto, um ruído comum que eu procurava a origem, o olhar indiferente, solitário das pessoas, e olhava-as nos olhos sem se aperceberem e quando acontecia notarem, tentava sorrir-lhes, o estar sozinha, o estar com os poucos mas queridos amigos, o ir e vir, por mim própria… finalmente… nada ser indiferente, tornar especial o que aparentemente é banal ou igual… e com uma consciência e um assumir inaudito, descobri que irei amar sempre, que me apaixonarei sempre, que este sentir é meu … sou eu...
Este ano, um pouco a descida à realidade, bastante solidão, o mundo ainda está lá; quando posso vou ter com ele, ele nunca vem ter comigo, nem nunca virá, e o mundo às vezes sabe ser duro… bem duro… mas eu dou-lhe um sorriso e ele suaviza, ele no fundo está tão só como eu, ou mais. Tenho-me a mim, para sempre, mesmo que às vezes, bata com a cabeça nas paredes nuas com telas. Sei que me tenho de manter viva todos os dias ’hoje é que é o dia’, fazer qualquer coisa, por mínima que seja, por mim e pelos outros… sim, pelos outros… outra coisa de que nunca mais me posso esquecer – que nunca esqueci, no fundo – dos outros… dos próximos, dos mais distantes, até dos desconhecidos… confio no coração deles… assim o meu torna-se maior… e o deles também… se precisarem de mim, estou aqui para o que puder, sem me esquecer de mim… isso nunca mais… só posso dar, se construir em mim. Um tijolo todos os dias… um mimo para mim para poder dar ternura aos outros. Espontaneamente. Livremente. Olhar os outros, para ver os outros e, para me ver a mim. Descobrir sempre algo de novo nos outros, em mim, em qualquer e em todas as coisas.

Já doeu demais sem qualquer sentido, já esperei demasiado por mim … agora quero viver… numa apaixonada serenidade… sozinha ou não… amando alguém, ou não, se não for possível, mas vou continuar amar… nem que seja uma gota d‘água deste rio... E o sol, e a lua, e as estrelas, as coisas e as pessoas… Não me vão quebrar o coração… mais valia ter morrido então… quero sorrir. E rir. Quero chorar, quero sentir. Ouvir, ver, saborear, dançar, falar, escrever. Nem que o faça sozinha - já o fiz tantas vezes, e estou aqui, assim. Acarinhar as minhas paixões. Já que estou, neste mundo… até decidir estar… vou fazê-lo…
Raios, estou a chorar… e ainda por cima outra vez aquela música… mas gosto de estar a chorar… estando mais bonita que nunca. condensando o mundo num só grito! Estou Viva!”



E POR VEZES

E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos."

David Mourão-Ferreira

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