Os sonhos mais lindos, sonhei
De quimeras mil um castelo ergui
E no teu olhar, tonto de emoção
Com sofreguidão, mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino, cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
És fascinação, amor
Elis Regina
[De súbito, lembrei... soou em mim, quis ouvir, mas o CD foi-se, ficaram-se os dedos, ou melhor, os sonhos...]
sexta-feira, 30 de abril de 2004
quinta-feira, 29 de abril de 2004
hoje é dia de escrever directamente aqui. é raro fazer isso. porque tenho medo que os meus importantíssimos e imprescindérimos posts se percam, escrevo-os primeiro no word. e depois há a auto-censura, mas disso é melhor nem falar. soube-me bem esta sestinha, apesar dos ruídos do dia que com o calor se propagam mais sonoramente. acordei e pensei o bem que me sabia agora ir passear de barco. e senti umas saudades dos barquinhos que já tive. estar no meio do mar, do azul, sem ouvir ruídos, só o marejar das ondas, o bater da água no casco. que tranquilidade. mar manso ou mar agitado, tanto fazia. só estar lá. não muito agitado. ainda hoje o meu ombro se ressente do esticão que levei ao agarrar-me por causa de uma onda de cerca de 4 a 5 metros. não, não sou 'pescadora'. gostava dessas ondas. e dos poucos peixes que tentei pescar o maior tinha aí uns 30 cms, se tanto. as ondas no mar alto não parecem ser tão grandes, então se tiverem um passo largo, ainda menos. era o que eu precisava, um diazinho no mar. mas como se diz, o que é bom é ter amigos com barcos, não ter um barco, eu desfiz-me dele, até por razões outras, e agora não há barco, nem passeio, fico a olhá-lo de terra, com a minha carta de marinheiro a ganhar bolor. ou contemplo-o daqui, do sonho.
Acordo com vontade de sentir mais. é um dia novo. sei que é mais a vontade do que o sentir, mas já é bom. Uma febrícula foi o pretexto para ficar em casa. hoje precisava de um outro tempo. de um outro olhar. viver a manhã nas calmas, sem ruminações e congeminações. até estou a conseguir continuar a escrita da tese. quero voltar ao mundo. quero sorrir. mesmo que seja engano, que se lixe. ir por não ir a lado nenhum, pelo menos, vou mais leve... hoje.
quarta-feira, 28 de abril de 2004
flor do deserto
Reguei com lágrimas os vestígios e as sementes que deixo pelo caminho. Humedeci-as também com sorrisos e carícias, afectos. Hoje rego-as com estas gotas de cloreto de sódio. Não sei o que os faz desaparecer mais depressa, o que as faz morrer um pouco mais, o pranto ou a alegria, mas é isto que tenho neste instante para dar.
Deserto, sim. Por vezes sentimos mais veementemente que todo o nosso percurso será feito naquela solidão – amada, inevitável, insuportável – pêndulo de três pontos hesitante, instável. E no deserto, depois da passagem, durante a viagem, restam as flores de pedra, rosas do deserto, belas, reais, metáforas vivas da imaginação. De cristal eterno. Sólidas e duras. Sem pétalas doces onde tocar. Só ver e cheirar. Alguns levam consigo a sua imagem, transformando-a em flor de verdade, que sendo fantasia, ilusão, vai murchando e florindo segundo o frio desolador ou o calor abrasador nas areias. Outros transportam o seu perfume – sim, elas cheiram mesmo -, perfume etéreo, volátil que se vai desvanecendo ainda mais rapidamente do que a imagem ilusionista.
E parece que o deserto nunca mais acaba… o deserto não acaba. Aqui e ali, uns oásis – os amigos que estão sempre lá, as letras, a música, as cores e os traços -, ecos do nosso grito, quando chamamos por eles do vazio. Por vezes, algumas miragens ou alguns pingos de chuva, ternas ilusões… o resto, areia, como nós, grãos de areia, áridos e secos e silenciosos, mesmo quando não o queremos ser…
Deserto, sim. Por vezes sentimos mais veementemente que todo o nosso percurso será feito naquela solidão – amada, inevitável, insuportável – pêndulo de três pontos hesitante, instável. E no deserto, depois da passagem, durante a viagem, restam as flores de pedra, rosas do deserto, belas, reais, metáforas vivas da imaginação. De cristal eterno. Sólidas e duras. Sem pétalas doces onde tocar. Só ver e cheirar. Alguns levam consigo a sua imagem, transformando-a em flor de verdade, que sendo fantasia, ilusão, vai murchando e florindo segundo o frio desolador ou o calor abrasador nas areias. Outros transportam o seu perfume – sim, elas cheiram mesmo -, perfume etéreo, volátil que se vai desvanecendo ainda mais rapidamente do que a imagem ilusionista.
E parece que o deserto nunca mais acaba… o deserto não acaba. Aqui e ali, uns oásis – os amigos que estão sempre lá, as letras, a música, as cores e os traços -, ecos do nosso grito, quando chamamos por eles do vazio. Por vezes, algumas miragens ou alguns pingos de chuva, ternas ilusões… o resto, areia, como nós, grãos de areia, áridos e secos e silenciosos, mesmo quando não o queremos ser…
terça-feira, 27 de abril de 2004
Entre o silêncio e palavras que não consigo ou melhor talvez não queira escrever, opto por palavras de outrém. dizendo assim algo do que sinto, sem dizerem tudo o que sinto. mas as palavras são por vezes apenas quase formas delineadas em que o espaço vazio, o espaço negativo nas formas negativas das letras, contém muito mais do que as linhas de que são formadas. Ler no aparente vazio… escrever para ainda comunicar, sem responder ou perguntar… escrever para não sentir demasiado… usar as teclas como desfocalização da atenção, da exigência que é sentir o que se sente, sem o querer expressar para ainda o embargar.
Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.
Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto das folhagens
Tombando se desfaz na terra fria.
Sophia de Mello Breyner Anderson
Sei que estou só e gelo entre as folhagens
Nenhuma gruta me pode proteger
Como um laço deslaça-se o meu ser
E nos meus olhos morrem as paisagens.
Desligo da minha alma a melodia
Que inventei no ar. Tombo das imagens
Como um pássaro morto das folhagens
Tombando se desfaz na terra fria.
Sophia de Mello Breyner Anderson
segunda-feira, 26 de abril de 2004
[Uma álea do Jardim, Giverny,
Claude Monet, 1901-1902]
Abro a janela de meu quarto,
pousada no parapeito, uma rosa
flor lilás vermelha amarela solar,
em beijo sorriso toco as pétalas
lábios aroma de diurna maresia.
A uma ave pergunto,
é flor despedida? ou rosa saudade?
No seu voo breve entrego um sonho
poema, leva-o ao poeta da rosa, peço.
Antes de partir para o destino, segreda
a ave baixinho, vai ao jardim.
Corro ligeira e sob os céus paro,
dos troncos roseiras que na madrugada
ardiam quase secos, ao sol da tarde
florescem mil rosas azul água,
cores do desejo, frutos de doce luz.
Grito em espanto, sem voz sem eco,
para a ave já distante…
domingo, 25 de abril de 2004
25 de Abril - imagens de criança
Tinha este poster na parede do meu quarto de criança. Deste dia ficou em mim o sentir da alegria vivida entre as pessoas. Era pequena demais para compreender a dimensão político-social desse dia, mas entendi, de algum modo, a dimensão socio-afectiva desse e dos dias que se lhe seguiram. Lembro-me de saber que não se podiam cantar certas canções na rua – um dia estava no quintal a brincar e a cantar canções que cantávamos em casa, nas viagens de carro, e a minha mãe manda-me calar, a mim e a minha irmã, porque nos podiam ouvir. Sabia dos LP´s escondidos no louceiro da sala, lá no fundo, atrás da pilha dos pratos. Zeca Afonso, Luís Cília, As canções heróicas musicadas por Fernando Lopes Graça. Sabia que havia livros proibidos, sem saber o que continham. Sabia que havia presos políticos e o que estavam em Caxias e no Aljube, como o meu pai tinha estado, e sabia dos interrogatórios e da ‘estátua’ e dos pés inchados e das luzes a incidirem sobre eles quando queriam dormir. E no dia 25 de Abril de 1974, lembro-me tão bem, ficou marcado; não tenho dessa idade, muitas recordações tão nítidas como as desse dia. Nesse dia, ninguém saiu, e ficámos o dia todo de volta de um rádio, daqueles grandes, antigos, a ouvir. Recordo o estar sentada no chão, encostada às pernas de meu pai sentado no sofá, atento, expectante. também eu estava atenta, escutando com alma de criança, tentando entender, com entendimento de criança. Toda a manhã, todo o dia. À noite, a televisão a preto-e-branco. Muitos nomes. Confusos. Fardas. Discursos. Grândola – emoção sempre, ainda. O Carmo – ingénua alegria. Partilhada. Sentida. E depois o 1º de Maio, especialmente o de 75, no estádio 1º de Maio. Cheio de gente, no meio da multidão, vi pouco, era pequena, de idade e de altura. Só anos mais tarde me apercebi dos conflitos subjacentes que ali estiveram. Mas o que resta em mim é a lembrança de uma fraternidade, um sentimento de semelhança ou de igualdade entre as pessoas, um olhar aberto e sorrisos para desconhecidos, a ausência de medo, como se tudo pudesse ser possível. Mais do que a liberdade, afinal já cresci na dita, o que ficou dessa época, foi esta imagem de uma ingénua alegria partilhada e de esperança. Nem eles nem eu (ainda) fazíamos perguntas, era como um sonho. E o que importava era os sonhos. Ainda hoje, há uma espécie de comoção em mim ao ouvir as canções dessa época, ao ver as imagens de Abril. Hoje com um outro sentir, ainda permanece algum desse sentir, utópico, quando tudo ou muito mudou. Ainda bem que estive lá, que de algum modo vivi e senti esse dia…
sábado, 24 de abril de 2004
Cada pingo ressoa na calçada, único e brutal,
massa chuva tropical em enxada que imola.
Estertor em corpo derruído, perdido entre
ecos de chuva, nas pedras paralelas amputadas,
massa corpo inerte estendida, aberta.
que chova até arrancar a pele
encarquilhada do abandonado,
que chova até desfazer a carne malograda
que chova até restarem só ossos abortados,
tão pouco uma lágrima ou nada,
só ossos na calçada molhada
só pó na intacta poça de água.
massa chuva tropical em enxada que imola.
Estertor em corpo derruído, perdido entre
ecos de chuva, nas pedras paralelas amputadas,
massa corpo inerte estendida, aberta.
que chova até arrancar a pele
encarquilhada do abandonado,
que chova até desfazer a carne malograda
que chova até restarem só ossos abortados,
tão pouco uma lágrima ou nada,
só ossos na calçada molhada
só pó na intacta poça de água.
quinta-feira, 22 de abril de 2004
[Para ler A Espera desde o início, clicar aqui]
a espera V
(continuação)
Enquanto o riscava, rasgava, levantou-se da mesa. no balcão pediu a conta e pousou duas moedas em cima da superfície vidrada. Obrigada. voltou-se sem esperar troco. antes de ultrapassar a ombreira da porta, olhou para o interior do café, para a mesa onde tinha estado sentada. Viu uma mulher nova, de olhar azul-verde fitando-a. Fitou-a fixamente também, durante uns instantes. Saiu, recebendo a brisa fresca do anoitecer no rosto, no corpo. apertou o casaco e começou a caminhar. partindo daquele sítio da espera, como querendo deixá-lo para trás, rasgando-o, riscando-o. avançou resoluta até à esquina, esquina que dobrou. aí olhou automaticamente para o lado contrário da rua que percorreria. virou o corpo e apercebeu-se que naquele olhar de relance para o outro lado da rua, vislumbrou um vulto. uma sombra de vulto. semelhante à da figura esperada, ao desejo da espera. hesitou sem parar, sem olhar para trás. sempre caminhando. Em pensamento quase instintivo pensou. não. ele saberá onde me encontrar. se é ele. encontrar-me-á. Parar ali significaria não acreditar na impossibilidade de um sonho sonhado a dois. Parar seria admitir um sonho sonhado somente por ela. sonho dela?
Na mesa do café a mulher de olhar verde-azul sorri, num esforço contido de um riso. sonho dela ou sonho seu? Ela, criação de si. criador transmutada em criatura, criatura fundida em criador. Espera de um encontro inexistente entre ela e o inexistente. nem dela-outra nem dele. não entre eles-outros, sonhados. por ela, dela ali. no presente. encontro não marcado senão em um sonho desejo de alguém-outra que cria, num admitir do impossível sonhado a… um, a dois? pouco importa. pouco importam os sonhos, não é mesmo? permanecem em sonho. na sua própria essência. olha para fora, o dia ainda está claro, luminoso, iluminando as matérias de um modo solar, clareando corpos feitos do dia. levanta-se da mesa. no balcão pede a conta e pousa duas moedas em cima da superfície vidrada. Obrigada. volta-se sem esperar troco. antes de ultrapassar a ombreira da porta, olha para o interior do café, para a mesa vazia onde tinha estado sentada. olha-a e sorri. Sai, recebendo o morno calor do dia, no rosto, no corpo e começa a caminhar. olhando em frente.
engano maior…?
.the end
[qualquer semelhança com a irrealidade… blá-blá-blá… é mera coincidência]
a espera V
(continuação)
Enquanto o riscava, rasgava, levantou-se da mesa. no balcão pediu a conta e pousou duas moedas em cima da superfície vidrada. Obrigada. voltou-se sem esperar troco. antes de ultrapassar a ombreira da porta, olhou para o interior do café, para a mesa onde tinha estado sentada. Viu uma mulher nova, de olhar azul-verde fitando-a. Fitou-a fixamente também, durante uns instantes. Saiu, recebendo a brisa fresca do anoitecer no rosto, no corpo. apertou o casaco e começou a caminhar. partindo daquele sítio da espera, como querendo deixá-lo para trás, rasgando-o, riscando-o. avançou resoluta até à esquina, esquina que dobrou. aí olhou automaticamente para o lado contrário da rua que percorreria. virou o corpo e apercebeu-se que naquele olhar de relance para o outro lado da rua, vislumbrou um vulto. uma sombra de vulto. semelhante à da figura esperada, ao desejo da espera. hesitou sem parar, sem olhar para trás. sempre caminhando. Em pensamento quase instintivo pensou. não. ele saberá onde me encontrar. se é ele. encontrar-me-á. Parar ali significaria não acreditar na impossibilidade de um sonho sonhado a dois. Parar seria admitir um sonho sonhado somente por ela. sonho dela?
Na mesa do café a mulher de olhar verde-azul sorri, num esforço contido de um riso. sonho dela ou sonho seu? Ela, criação de si. criador transmutada em criatura, criatura fundida em criador. Espera de um encontro inexistente entre ela e o inexistente. nem dela-outra nem dele. não entre eles-outros, sonhados. por ela, dela ali. no presente. encontro não marcado senão em um sonho desejo de alguém-outra que cria, num admitir do impossível sonhado a… um, a dois? pouco importa. pouco importam os sonhos, não é mesmo? permanecem em sonho. na sua própria essência. olha para fora, o dia ainda está claro, luminoso, iluminando as matérias de um modo solar, clareando corpos feitos do dia. levanta-se da mesa. no balcão pede a conta e pousa duas moedas em cima da superfície vidrada. Obrigada. volta-se sem esperar troco. antes de ultrapassar a ombreira da porta, olha para o interior do café, para a mesa vazia onde tinha estado sentada. olha-a e sorri. Sai, recebendo o morno calor do dia, no rosto, no corpo e começa a caminhar. olhando em frente.
engano maior…?
.the end
[qualquer semelhança com a irrealidade… blá-blá-blá… é mera coincidência]
quarta-feira, 21 de abril de 2004
a espera IV
(continuação)
o empregado inclina-se sobre a mesa. posso? sim, retira a chávena e o copo. Ah! um copo de leite, por favor. Tinha-se esquecido de há pouco ter notado os empregados a olharem para aquele lugar. demasiado tempo. pouco consumo. a realidade, pois é. um copo de leite saberia bem, estava com sede. Sede. sede de se dar, de ser recebida, de receber. não era necessidade. era também temor. era, simplesmente. antes de ser necessidade, antes ou depois de ser temor. tremor de ser importante, de se tornar necessária, fatal. de ser tornar necessário, essencial. Obrigada. Bebe meio copo quase de um gole. a frescura. a simplicidade. líquida. sorriu. passou a língua pelos lábios, desfazendo o contorno branco deixado pelo leite. desejou olhá-lo com alegria. com aquela alegria que se sente em momentos raros. comunhão na alegria efémera. onde esse olhar rasgado transporta para um outro e momentâneo mundo. simples. quase inocente. talvez o que esperasse fosse um pouco desse mundo. um mundo que ninguém lhe poderia dar, mas que poderia compartilhar. um mundo impossível possível por breves instantes ao longo de um tempo de olhares e de lágrimas. de lágrimas. tocadas ao longo da noite melodia sabor dança. sendo a sua canção, sendo canção. Por vezes tinha medo que os outros levassem demasiado a sério os seus sonhos sérios, de os assustar julgando exigir-lhes algo de impossível. de os enganar com desejos de algo que ela sabia impossível. tão possível no impossível. tão impossível no possível. por isso um dia tinha-lhe pedido, diz-me sempre, diz-me sempre o que sentes. para que todos os desencontros fosse apesar de tudo um encontro. E estava ali sem saber, às vezes julgava que lhe bastava sentir para saber, outras que estava tão longe de o saber ou de o sentir. Não era exigir saber, se nem isso podia ter de si mesma, como o poderia pedir sequer? só gostava ou precisava de sentir, como se sentia a si mesma. E de repente apeteceu-lhe rasgar estes pensamentos todos, como se estivesse a dar-se demasiado, como se tivesse medo que a tomassem demasiado. não, não era isso ela queria. o contrário o que seria? quereria? um despojamento, um desprendimento do sentir, uma anulação do afecto. Este pensar já era uma incisão na espontaneidade, na alegria de ser possível, era uma fractura na entrega, não renunciando a ser apenas ela. por vezes pensava que ele acreditava que já a possuía de algum modo, que a possuía através do olhar e isso bastava-lhe, bastava-lhe na ilusão de uma presença que jamais poderia ser mágoa, a posse do olhar não fere, não dói, é manipulável pelos sonhos como os que ela elaborava, ali. espaços possíveis com corpos impossíveis. que engano maior o de sermos tomados pelos nossos próprios sonhos, sonhando o sonho julgando estarmos despertos. De repente quis rasgá-lo, riscá-lo por ser pensamento sonhado, por ser sonho pensado, sentimento estranho que se entranha, guardá-lo na memória daquelas noites e as noites seriam aquelas e outras que não guarda ainda na memória. desejou satisfazer-se com o insatisfatório, preencher-se de um pouco estendido, amplificado em si. Desculpe, menina, vamos fechar. Aquela voz vinda do irreal porque o real estava ali. Diga? o empregado repete a frase e ela olha para fora, está anoitecendo, as luzes dos candeeiros já se acenderam, iluminam as matérias como se de outras fossem, aclaram corpos feitos de noite. Olha e, com dificuldade, contem o riso. um riso interior quase extravasado. denunciado.
(continua…)
[brevemente…num lugar perto de si]
o empregado inclina-se sobre a mesa. posso? sim, retira a chávena e o copo. Ah! um copo de leite, por favor. Tinha-se esquecido de há pouco ter notado os empregados a olharem para aquele lugar. demasiado tempo. pouco consumo. a realidade, pois é. um copo de leite saberia bem, estava com sede. Sede. sede de se dar, de ser recebida, de receber. não era necessidade. era também temor. era, simplesmente. antes de ser necessidade, antes ou depois de ser temor. tremor de ser importante, de se tornar necessária, fatal. de ser tornar necessário, essencial. Obrigada. Bebe meio copo quase de um gole. a frescura. a simplicidade. líquida. sorriu. passou a língua pelos lábios, desfazendo o contorno branco deixado pelo leite. desejou olhá-lo com alegria. com aquela alegria que se sente em momentos raros. comunhão na alegria efémera. onde esse olhar rasgado transporta para um outro e momentâneo mundo. simples. quase inocente. talvez o que esperasse fosse um pouco desse mundo. um mundo que ninguém lhe poderia dar, mas que poderia compartilhar. um mundo impossível possível por breves instantes ao longo de um tempo de olhares e de lágrimas. de lágrimas. tocadas ao longo da noite melodia sabor dança. sendo a sua canção, sendo canção. Por vezes tinha medo que os outros levassem demasiado a sério os seus sonhos sérios, de os assustar julgando exigir-lhes algo de impossível. de os enganar com desejos de algo que ela sabia impossível. tão possível no impossível. tão impossível no possível. por isso um dia tinha-lhe pedido, diz-me sempre, diz-me sempre o que sentes. para que todos os desencontros fosse apesar de tudo um encontro. E estava ali sem saber, às vezes julgava que lhe bastava sentir para saber, outras que estava tão longe de o saber ou de o sentir. Não era exigir saber, se nem isso podia ter de si mesma, como o poderia pedir sequer? só gostava ou precisava de sentir, como se sentia a si mesma. E de repente apeteceu-lhe rasgar estes pensamentos todos, como se estivesse a dar-se demasiado, como se tivesse medo que a tomassem demasiado. não, não era isso ela queria. o contrário o que seria? quereria? um despojamento, um desprendimento do sentir, uma anulação do afecto. Este pensar já era uma incisão na espontaneidade, na alegria de ser possível, era uma fractura na entrega, não renunciando a ser apenas ela. por vezes pensava que ele acreditava que já a possuía de algum modo, que a possuía através do olhar e isso bastava-lhe, bastava-lhe na ilusão de uma presença que jamais poderia ser mágoa, a posse do olhar não fere, não dói, é manipulável pelos sonhos como os que ela elaborava, ali. espaços possíveis com corpos impossíveis. que engano maior o de sermos tomados pelos nossos próprios sonhos, sonhando o sonho julgando estarmos despertos. De repente quis rasgá-lo, riscá-lo por ser pensamento sonhado, por ser sonho pensado, sentimento estranho que se entranha, guardá-lo na memória daquelas noites e as noites seriam aquelas e outras que não guarda ainda na memória. desejou satisfazer-se com o insatisfatório, preencher-se de um pouco estendido, amplificado em si. Desculpe, menina, vamos fechar. Aquela voz vinda do irreal porque o real estava ali. Diga? o empregado repete a frase e ela olha para fora, está anoitecendo, as luzes dos candeeiros já se acenderam, iluminam as matérias como se de outras fossem, aclaram corpos feitos de noite. Olha e, com dificuldade, contem o riso. um riso interior quase extravasado. denunciado.
(continua…)
[brevemente…num lugar perto de si]
terça-feira, 20 de abril de 2004
a espera III
(continuação)
aquele mundo, aquela espera. que significava afinal? não o saberia dizer em concreto. como falar do mundo dos sentimentos com palavras que os traduzem tão precariamente? mesmo auscultando-se, sentindo-se, sentido a pulsação, os músculos, quase as transmissões sinápticas nervosas, só as podia descrever como alterações, talvez medíveis num qualquer aparelhómetro. sabia que não era um sentimento amadurecido, estava na pele, um frémito que a percorria por vezes, outras um sentir suave, de sorriso nos lábios. e por vezes sentia que estava mais entranhado, num tocar fundo, como se nascesse dum cerne qualquer. porque haveria de classificar? porquê a necessidade de sempre se afirmar coisas? acredito, não acredito. é verdade, é mentira. é branco, é preto. as pessoas muitas vezes não entendiam que as suas afirmações não eram taxativas. eram seguras talvez, ou davam uma impressão de segurança, de afirmação forte, mas poucos sabiam que a certeza era no momento, porque precisamos de ter certezas. não está o mundo sempre em movimento? mas não lhe pedissem também para crer naquilo que os outros diziam, só por lho dizerem. Ouve: diz adeus à senhora. Estava a seguir com os olhos e com um sorriso, aquela mãe e aquela criança, que partiam juntamente com aqueles seus pensamentos. a criança acena com a mãozita, timidamente. Como a criança. não, não pode fazê-lo. mesmo que às vezes seja conveniente, não pode. é uma forma de resistir. sempre o foi. ou uma forma de se tornar gente. A criança antes de sair a porta do café ainda olha mais uma vez para trás, mesmo puxada pela mãe, olha na outra direcção. para dentro. não sorri. olha. O que é a verdade do sentir? não que pergunte. apenas coloca a questão. seria uma resposta tão banal ou tão circular. aquilo que se sente. terá nome? é preciso ter nome para existir? para ser? podia ter outro nome qualquer, cor, verbo, barro, pranto, templo, fogo, solar, dia, medo, pétala, estame, laços, desoculto, lunar, lágrima, magia. cada um deles. todos. tudo. algo sem nome. Tudo ali no café tinha nome, e os seus olhos nomeavam com o olhar. já tinha percorrido, na espera, todas as vitrinas, quase todas as garrafas expostas, todas as chávenas e copos de muitas formas e tamanhos, mais caixas e caixinhas coloridas, uns quantos bolos e pastéis que restavam da hora do lanche. tinha observado a vestimenta dos empregados, os seus gestos, os seus movimentos, a caixa registadora antiga decorando o balcão, as cadeiras, as mesas, a louça suja que permanecia por minutos em cima delas, os clientes que davam ou não pela sua presença. como um filme que passava por detrás de si, ou à sua frente, por detrás dos seus pensamentos. registando num outro plano, no plano do olhar. aparentemente superficial, sem história ou memória. Tudo ali tinha nome. E o que ela sentia, tinha? E o nome daquilo que ele sentiria, teria forma? talvez por não o ter é que demorava a vir? ou por ter? o nome do que ela sentia, um desejo de gesto, de mãos, de abraço. de silêncio neste desejo. na demora, na espera permanece a ternura, aumenta a saudade, do olhar. sentiu-o perto. a umas ruas de distância. apenas. e na ternura, na proximidade, a inquietação aumenta, de forma diferente. ainda é dúvida do encontro. sentiria que ela estava à sua espera, ainda? que não fosse isso que o fizesse vir. ou só isso. que fosse a consciência ou a respiração do seu sentir que encaminhasse os seus passos na direcção daquele lugar. Era tão fácil encontrá-la. e permanecê-la? Via através do vidro da janela, pessoas a ir e a vir, passando de lá para além, a caminho de um qualquer destino. Este vaivém exterior foi quebrado pela percepção de uma presença em movimento muito lento, perto dela, perto do seu corpo. estremeceu.
(continua…)
[mais um tempo de espera…?]
aquele mundo, aquela espera. que significava afinal? não o saberia dizer em concreto. como falar do mundo dos sentimentos com palavras que os traduzem tão precariamente? mesmo auscultando-se, sentindo-se, sentido a pulsação, os músculos, quase as transmissões sinápticas nervosas, só as podia descrever como alterações, talvez medíveis num qualquer aparelhómetro. sabia que não era um sentimento amadurecido, estava na pele, um frémito que a percorria por vezes, outras um sentir suave, de sorriso nos lábios. e por vezes sentia que estava mais entranhado, num tocar fundo, como se nascesse dum cerne qualquer. porque haveria de classificar? porquê a necessidade de sempre se afirmar coisas? acredito, não acredito. é verdade, é mentira. é branco, é preto. as pessoas muitas vezes não entendiam que as suas afirmações não eram taxativas. eram seguras talvez, ou davam uma impressão de segurança, de afirmação forte, mas poucos sabiam que a certeza era no momento, porque precisamos de ter certezas. não está o mundo sempre em movimento? mas não lhe pedissem também para crer naquilo que os outros diziam, só por lho dizerem. Ouve: diz adeus à senhora. Estava a seguir com os olhos e com um sorriso, aquela mãe e aquela criança, que partiam juntamente com aqueles seus pensamentos. a criança acena com a mãozita, timidamente. Como a criança. não, não pode fazê-lo. mesmo que às vezes seja conveniente, não pode. é uma forma de resistir. sempre o foi. ou uma forma de se tornar gente. A criança antes de sair a porta do café ainda olha mais uma vez para trás, mesmo puxada pela mãe, olha na outra direcção. para dentro. não sorri. olha. O que é a verdade do sentir? não que pergunte. apenas coloca a questão. seria uma resposta tão banal ou tão circular. aquilo que se sente. terá nome? é preciso ter nome para existir? para ser? podia ter outro nome qualquer, cor, verbo, barro, pranto, templo, fogo, solar, dia, medo, pétala, estame, laços, desoculto, lunar, lágrima, magia. cada um deles. todos. tudo. algo sem nome. Tudo ali no café tinha nome, e os seus olhos nomeavam com o olhar. já tinha percorrido, na espera, todas as vitrinas, quase todas as garrafas expostas, todas as chávenas e copos de muitas formas e tamanhos, mais caixas e caixinhas coloridas, uns quantos bolos e pastéis que restavam da hora do lanche. tinha observado a vestimenta dos empregados, os seus gestos, os seus movimentos, a caixa registadora antiga decorando o balcão, as cadeiras, as mesas, a louça suja que permanecia por minutos em cima delas, os clientes que davam ou não pela sua presença. como um filme que passava por detrás de si, ou à sua frente, por detrás dos seus pensamentos. registando num outro plano, no plano do olhar. aparentemente superficial, sem história ou memória. Tudo ali tinha nome. E o que ela sentia, tinha? E o nome daquilo que ele sentiria, teria forma? talvez por não o ter é que demorava a vir? ou por ter? o nome do que ela sentia, um desejo de gesto, de mãos, de abraço. de silêncio neste desejo. na demora, na espera permanece a ternura, aumenta a saudade, do olhar. sentiu-o perto. a umas ruas de distância. apenas. e na ternura, na proximidade, a inquietação aumenta, de forma diferente. ainda é dúvida do encontro. sentiria que ela estava à sua espera, ainda? que não fosse isso que o fizesse vir. ou só isso. que fosse a consciência ou a respiração do seu sentir que encaminhasse os seus passos na direcção daquele lugar. Era tão fácil encontrá-la. e permanecê-la? Via através do vidro da janela, pessoas a ir e a vir, passando de lá para além, a caminho de um qualquer destino. Este vaivém exterior foi quebrado pela percepção de uma presença em movimento muito lento, perto dela, perto do seu corpo. estremeceu.
(continua…)
[mais um tempo de espera…?]
segunda-feira, 19 de abril de 2004
a espera II
(continuação)
Aquela espera não seria em vão. qualquer que fosse o desfecho. Não importa o fim, esse, se calhar, é demasiado conhecido ou supostamente. o importante é o caminho, os encontros, os olhares, as vozes. Não iria telefonar, para quê? sentia que nada de grave lhe estava a acontecer. sabia que era opção sua. podia até estar retido, ocupado, mas quando se deseja, quando se quer, todos os impossíveis se tornam possíveis, todos os impossíveis que estão na nossa mão. só o impossível de nós mesmos é impossível. Sempre foi boa a esperar. conhecia imensas desculpas. imensas ilusões, dela, dos outros. enganos, também, e porque não dizê-lo, mentiras. afinal, viveu tantos anos com alguém que mentia tanto. se antes já julgava que tinha instintos detectivescos, a partir daí, sorria quando apanhava mais uma. nem ia à procura, era só ver, relacionar e ela surgia tão límpida, tão infantil. têm as pernas tão curtas. é tão difícil alguém não entrar em contradição. mas não confrontava, cada um faz aquilo que acha que deve fazer. vai-se entranhando na forma de ser. somos também aquilo que dizemos, aquilo que pensamos, aquilo que agimos. aceitou as mentiras, sabendo-as mentira até ao dia, até aquele dia. não, não aceitou as mentiras, aceitou quem as dizia, entendeu as razões interiores que levavam à mentira. Não que pensasse verdadeiramente que era uma situação idêntica. mas os indícios podem ter tantas leituras diferentes, opostas. e o passado também marca, quer se queira quer não. Pensava nos impossíveis dele, não o conhecia assim tão bem, hipotetizava tanta coisa, supunha, é o que acontece quando se tem apenas vestígios. sim, vestígios, fragmentos. e nestes surgem, encerram-se enigmas. precisa-se mesmo que não se queira, de uma certa ordem, de um quadro qualquer. Fragmentos que quando se tornavam mais concretos, mais sentidos, havia sempre alguma coisa que o fazia desaparecer. a distância. se não era uma natural distância física, havia uma outra. sem origem, sem especificação, sem concretude. simplesmente havia. constantemente. Sentia desassossego. como de outras vezes em que ficava algum tempo sem lhe falar. um desassossego suspendido quando falava com ele, nas noites longas de conversa, quando lhe ouvia a voz calma, tranquila. sabia então, nesse momento, que precisava do seu olhar. que faltava. ali. E na inquietação, o que fazia? ficava quieta, corporalmente quase imóvel deixando a imaginação ou os devaneios ou outra coisa qualquer seguir um caminho autónomo. Não era inacção. podia agir, mas apreciava as efabulações, o curso do pensamento a ir, a ir, sem verdades nem erros, até que, por vezes pensava encontrar algo de mais provável. não, não se agarrava rigidamente àquele. pegava nele e embalava-o, tentando ver se outros fragmentos do pensamento se encaixavam como num puzzle. havia peças que sim outras não. nada era definitivo, nem em si nem no outro. O café enchia-se outra vez, mais uma vez. era a hora do lanche. sentou-se uma mãe com uma criança, na mesa ao lado. A sua atenção concentrou-se na voz da criança, faladora, curiosa, indagadora. A criança apercebeu-se que estava a ser observada e ficou em silêncio. olhou, um pouco de lado, retribuiu o sorriso que recebeu. continuou a falar com a mãe, primeiro a olhar para a senhora da mesa ao lado, depois esqueceu-se. como todas as crianças, entrou no seu mundo outra vez. Ela, à espera, reentrou também no seu mundo da espera. aquele mundo, aquela espera. que significava afinal?
(continua…)
[pedimos desculpa pela espera… segue dentro de momentos]
Aquela espera não seria em vão. qualquer que fosse o desfecho. Não importa o fim, esse, se calhar, é demasiado conhecido ou supostamente. o importante é o caminho, os encontros, os olhares, as vozes. Não iria telefonar, para quê? sentia que nada de grave lhe estava a acontecer. sabia que era opção sua. podia até estar retido, ocupado, mas quando se deseja, quando se quer, todos os impossíveis se tornam possíveis, todos os impossíveis que estão na nossa mão. só o impossível de nós mesmos é impossível. Sempre foi boa a esperar. conhecia imensas desculpas. imensas ilusões, dela, dos outros. enganos, também, e porque não dizê-lo, mentiras. afinal, viveu tantos anos com alguém que mentia tanto. se antes já julgava que tinha instintos detectivescos, a partir daí, sorria quando apanhava mais uma. nem ia à procura, era só ver, relacionar e ela surgia tão límpida, tão infantil. têm as pernas tão curtas. é tão difícil alguém não entrar em contradição. mas não confrontava, cada um faz aquilo que acha que deve fazer. vai-se entranhando na forma de ser. somos também aquilo que dizemos, aquilo que pensamos, aquilo que agimos. aceitou as mentiras, sabendo-as mentira até ao dia, até aquele dia. não, não aceitou as mentiras, aceitou quem as dizia, entendeu as razões interiores que levavam à mentira. Não que pensasse verdadeiramente que era uma situação idêntica. mas os indícios podem ter tantas leituras diferentes, opostas. e o passado também marca, quer se queira quer não. Pensava nos impossíveis dele, não o conhecia assim tão bem, hipotetizava tanta coisa, supunha, é o que acontece quando se tem apenas vestígios. sim, vestígios, fragmentos. e nestes surgem, encerram-se enigmas. precisa-se mesmo que não se queira, de uma certa ordem, de um quadro qualquer. Fragmentos que quando se tornavam mais concretos, mais sentidos, havia sempre alguma coisa que o fazia desaparecer. a distância. se não era uma natural distância física, havia uma outra. sem origem, sem especificação, sem concretude. simplesmente havia. constantemente. Sentia desassossego. como de outras vezes em que ficava algum tempo sem lhe falar. um desassossego suspendido quando falava com ele, nas noites longas de conversa, quando lhe ouvia a voz calma, tranquila. sabia então, nesse momento, que precisava do seu olhar. que faltava. ali. E na inquietação, o que fazia? ficava quieta, corporalmente quase imóvel deixando a imaginação ou os devaneios ou outra coisa qualquer seguir um caminho autónomo. Não era inacção. podia agir, mas apreciava as efabulações, o curso do pensamento a ir, a ir, sem verdades nem erros, até que, por vezes pensava encontrar algo de mais provável. não, não se agarrava rigidamente àquele. pegava nele e embalava-o, tentando ver se outros fragmentos do pensamento se encaixavam como num puzzle. havia peças que sim outras não. nada era definitivo, nem em si nem no outro. O café enchia-se outra vez, mais uma vez. era a hora do lanche. sentou-se uma mãe com uma criança, na mesa ao lado. A sua atenção concentrou-se na voz da criança, faladora, curiosa, indagadora. A criança apercebeu-se que estava a ser observada e ficou em silêncio. olhou, um pouco de lado, retribuiu o sorriso que recebeu. continuou a falar com a mãe, primeiro a olhar para a senhora da mesa ao lado, depois esqueceu-se. como todas as crianças, entrou no seu mundo outra vez. Ela, à espera, reentrou também no seu mundo da espera. aquele mundo, aquela espera. que significava afinal?
(continua…)
[pedimos desculpa pela espera… segue dentro de momentos]
domingo, 18 de abril de 2004
A espera
Estava sentada naquela mesa daquele café. Tinha chegado há pouco tempo. O empregado nem ainda tinha vindo ter com ela perguntar o que desejava. O local, conhecido mas pouco habitual. Tinha-se sentado ao pé da janela, onde havia maior claridade, onde poderia ver, o exterior, o interior. O estabelecimento estava quase vazio, mas assim mesmo demoravam a atendê-la. Não importa, tinha tempo. Apetecia-lhe mesmo um café, tinha acabado de almoçar, mas podia esperar até que os empregados acabassem de conversar. Tinha combinado um encontro, ali. Não sei se era bem uma combinação. Era, claro que era. Tinham dito, depois de almoço? sim, lá estarei. Não tinham combinado horas certas, mas sabiam que esperavam um pelo outro, ali, mais ou menos àquelas horas. Um café, por favor. e um copo de água. No início a espera nunca é espera. É o chegar. É o estar. O olhar as coisas, os objectos, o ambiente, as pessoas. É uma assimilação, é uma adaptação ao meio, mesmo num contexto rotineiro. Pelo menos, para ela. É um ver de novo, com os olhos daquele momento. Obrigada. Rasga o pacote de açúcar, deita um pouco, mexe com a colher. Continua a rodá-la naquele líquido castanho, naquela chávena branca, até se aperceber desse movimento. Pára. Bebe-o em goles curtos, prolongando, como sempre faz. Como um ritual. Não é por estar à espera, é o habitual, é um tempo saboreado. Não, não é por estar à espera. Sim, agora começa a ficar à espera. Não muito, ainda. Normalmente é ela quem costuma chegar primeiro, ela que costuma esperar, não é apenas por educação, é por respeito, por gostar de quem a espera, não os fazendo esperar. Prefere ser ela a esperar. Estar ali com um sorriso quando chegam. Mesmo atrasados. Mesmo quando muito atrasados. É um atender ao ritmo dos outros, não, não se zanga, afinal cada um tem o seu ritmo, o seu tempo, o seu modo de gostar e de demonstrar que se gosta. Para muitos nem tem a ver com o gostar dos outros, é independente, simplesmente são assim, desprendidos? ocupados? centrados em si próprios? maus gestores do seu tempo? que importa? que importa quando a nossa vida não depende disso, quando apenas se quer estar, se quer partilhar alguns momentos com essas pessoas? o que importava era que, apesar disso, queriam estar juntos, conversar, rir, olharem-se. O café começava a encher-se, as pessoas vinham tomar a bica, fazer a digestão, como por vezes se costuma dizer. Ela olhava-as, escutava as conversas, observava os gestos, ouvia simplesmente os tons de voz. Por vezes deixava de estar à espera. Estava, somente. O local voltava a ficar quase vazio, e ela olhava a rua, os transeuntes, a calçada, as sombras no empedrado, as formas das árvores, surgindo-lhe pensamentos dispersos, flashs prolongados como o seu olhar sobre as coisas que ora se movia ora se aquietava num qualquer lugar. De repente, voltava a estar à espera. Estava a começar a ficar impaciente. Não irritada. Inquieta. Desassossegada. Talvez não fosse um encontro como qualquer outro. Se bem que não sabia ao certo o que iria dizer, o que iria acontecer. Nada previa. Só queria olhar. E talvez aí sim soubesse. o que dizer. o que sentir. Começava a ter tempo. tempo de ler outra vez coisas que já tinham acontecido. ler com os sentimentos da espera. Olha para o telemóvel. Com som, sem mensagens. Pousa-o. Olha para fora, para a rua. Mexe-se na cadeira. Faz sentido continuar a esperar? A decisão estava quase tomada. Era só escutar, escutar-se, um pouco mais. Aquela espera…
(continua…)
(continua…)
sábado, 17 de abril de 2004
criador e criaturas §1
“… No meu caso, toda a pintura (…) é um acidente. Assim eu prevejo-a na minha mente, prevejo-a e no entanto raramente a executo tal como a prevejo. Ela transforma-se a si própria através da tinta. (…) muitas vezes não sei de facto o que a tinta irá fazer e ela faz muitas coisas que são melhores do que aquelas que eu poderia pô-la a fazer. Será isso um acidente? talvez se possa dizer que não é um acidente porque se torna um processo selectivo decidir que parte desse acidente se escolhe preservar. Tenta-se claro conservar a vitalidade do acidente preservando, no entanto, uma continuidade.”
Francis Bacon, in wallpaper na Exposição em Serralves, 2003
sexta-feira, 16 de abril de 2004
aquela meia hora
gosto de acordar cedo, mesmo antes do despertador tocar, como que para aproveitar o dia, pelo menos a manhã, com aquela claridade peculiar. gosto de ter de conduzir aqueles quilómetros, nunca é stressante, pelo contrário, independentemente do trânsito. É um sentir de um tempo diferente, um silêncio outro, um silêncio de música e de pensamentos que se vão dispersando ao longo da estrada, que se vão buscando e concentrando, aqui e além, por entre casas, fábricas, pedaços de verde, asfalto. Não é necessidade de estar sozinha, isso já tenho, nem de silêncio, é um gostar distinto, um gostar de prazer, de um movimento quieto, de uma atenção partilhada, de uma paz contrastada. É invasão da música naquele espaço limitado, circunscrito, que pode ou não interferir consoante os meus pensamentos ou a exigência do tráfego – sim, a segurança acima de tudo -. É um rolar pensante desapegado, intermitente com música. E quando a música se coaduna com o meu estado de espírito… assim foi hoje… mozart, uma música barroca cantada, peter gabriel… num zapping sempre necessário e nem sempre bem sucedido… não gosto de ouvir aquelas esganiçadas e frenéticas vozes faladas da rádio logo de manhã, parecendo que nos querem despertar à força… nem houve telemóvel (com auricular) mesmo a meio daquela música que se quer mesmo escutar… houve música e sentir e pensar… estar ali, ao mesmo tempo activa e contemplativa. E estaciono, olho para o rio, mesmo ali ao pé, sempre outro, e respiro… é uma meia hora especial, de tranquilidades… e ala para o trabalho…
quinta-feira, 15 de abril de 2004
quarta-feira, 14 de abril de 2004
folheando...
§3
“Por vezes refugio-me no silêncio.
Arrumo as máscaras a um canto e leio-me no espelho.
Brilha-me um sol nos olhos.
Os excessos do dia a dia reduzem-me ao osso, à própria ausência de pensar-me (escrevo anos depois), a uma luz quase linear –
e, então, o vazio fica apto a tornar-se novamente pleno, pletórico”
Casimiro de Brito, Imitação do Prazer, Diabril, 1977
“Por vezes refugio-me no silêncio.
Arrumo as máscaras a um canto e leio-me no espelho.
Brilha-me um sol nos olhos.
Os excessos do dia a dia reduzem-me ao osso, à própria ausência de pensar-me (escrevo anos depois), a uma luz quase linear –
e, então, o vazio fica apto a tornar-se novamente pleno, pletórico”
Casimiro de Brito, Imitação do Prazer, Diabril, 1977
terça-feira, 13 de abril de 2004
segunda-feira, 12 de abril de 2004
Filomena
é alegre, faladora, um pouco 'arvoada', mas atenta aos outros, dá-se a quem gosta e parece gostar de todos, mesmo de quem talvez não mereça. É incapaz de dizer não. Conhecia-a há pouco tempo, algumas das minhas colegas de trabalho já a conhecem desde miúda – circunstâncias de terem nascido e viverem naquela cidade pequena, perto de Lisboa. Filomena tirou uns dias de férias nesta época da Páscoa. No seu primeiro dia de férias, foi de propósito ao local de trabalho levar um pacote de ovinhos da Páscoa para cada uma de nós – na altura eu tinha saído para um café. Ninguém mais levou. Ela é a moça que faz as limpezas. Pela porta entreaberta ouço-a falar com as outras funcionárias. Fala, fala, de vez em quando ouve-se o som do seu telemóvel, daqueles com um som polifónico super-irritante, mas até isso, nela, me suscita um sorriso. Fala das roupas, das lojas, de receitas… com um jeito tão engraçado que, por vezes, paro só para a ouvir. Tem um tom de voz animado, por vezes galhofeiro, mas não é vulgar, e quando lhe escapa 'alguma mais atrevida', põe a mão na boca, faz um ar comprometido, olha para mim e diz: "Ó dótora, desculpe" ou então "Ó dótora, não ligue, sabe?! isto sai!" . A Filomena não faz transparecer facilmente a sua tristeza, mesmo quando tem problemas. E está sempre com problemas de dinheiro, mas, ouvi-a contar, comprou uma máquina de café caríssima "Perdi a cabeça! e olha, já não fui de férias", com um ar entre o descontraído e o inevitável. Não é tão nova como parece, tem já dois filhos, um marido de quem diz "Deu-me tudo. Tem-me dado tudo." e pela sua vivacidade, parece que já teve problemas… as eternas intrigas e mexericos… No intervalo de almoço, borda a ponto de cruz um quadro para pôr no quarto do filho, empenhada e orgulhosa do que faz bem. Não diz mal de ninguém, comenta sim, mas como se fossem histórias que conta com afecto. Hoje, a Filomena voltou ao trabalho e ao agradecer-lhe os ovos de chocolate, diz: "Ó dótora, não foi nada, eu tinha ido ao Jumbo, e sabe, vi aqueles pacotinhos e pensei levá-los para estas malucas", engole em seco, sorri, e acrescenta, "a dótora não". Sorrio-lhe. Não posso deixar de sorrir a uma certa ingenuidade, a uma certa pureza, à espontaneidade… é assim a Filomena.
domingo, 11 de abril de 2004
Leva-me vento
na vontade de ser raiz aérea
vogando pelos desertos, e que
me pesem as areias matéria
e não haja águas e verdes,
ou frescura gélida.
Leva-me, pois a sede cerúlea
onde agora mergulho, já me afoga
e me transforma em salina vermelha
de sangue sol.
Lá, serei um grão – eu sei -,
cacto, gota seca de nada, torrão
aridez doce, escorpião sereia,
em traço visível sem rasto,
ou lenda.
Leva-me.
Serei oco ventre de ti,
vento.
na vontade de ser raiz aérea
vogando pelos desertos, e que
me pesem as areias matéria
e não haja águas e verdes,
ou frescura gélida.
Leva-me, pois a sede cerúlea
onde agora mergulho, já me afoga
e me transforma em salina vermelha
de sangue sol.
Lá, serei um grão – eu sei -,
cacto, gota seca de nada, torrão
aridez doce, escorpião sereia,
em traço visível sem rasto,
ou lenda.
Leva-me.
Serei oco ventre de ti,
vento.
sábado, 10 de abril de 2004
a propósito da arte e "do mundo original"...
"Uma ideia só interfere na vida quando o sangue a reconhece (...)"
(nem a calhar, depois de uma conversa sobre os filmes que marcam as nossas vidas...)
"Que nos baste, para sermos homens, a nós que não somos santos, a certeza de que os «outros» são da vida, (...) e simultaneamente a inexorável certeza de que há um mundo onde só nós poderemos ver, reconhecer - esse onde de nada nos valerá ninguém (a não ser que a nós próprios nos ludibriemos), esse mundo primordial que raia à solidão e à morte."
"enquanto «problema», como não ver que numa dimensão de vivência toda a questão é vã?(...) O firmar ou o desventrar da ilusão não nos rectificará o sentir: uma convicção de «liberdade» ou de «determinismo» não confirma ou invalida a presença - mais profunda que tudo isso - de nós a nós próprios. (...) Do «eu profundo» bergsoniano (...) à radical liberdade de Sartre (...) [a] Merleau-Ponty (...) e Jeanne Delhomme(...) que chama liberdade ao «destino do ser»", há leituras que podem ir de um absoluto determinismo a uma escolha indefectível. “(…) Em qualquer acto humano o mais remoto ou mais condicionado está implícita uma escolha original, e o próprio acto voluntário não testemunha a liberdade que já está implicada na escolha desse acto. (…) se a liberdade é impensável, (…) em situação alguma nos furtamos à certeza de que podemos vivê-la. A consciência não é pura passividade.”
(e só para terminar, porque a tentação de colocar outros excertos é grande…)
“De que me serve, no acto puro de sentir a Arte, tudo quanto sobre ela disse? (…)
A arte é tão simples! Como a alegria, a esperança, a amargura. Como o amor. Eternamente nos explicarão o que é o amor, o que o estrutura, o define, o revela. Mas só o conhece quem o ama.”
Vergílio Ferreira, Do mundo original, Liv. Bertrand, 1979, pp. 21,15, 22, 253-254
(nem a calhar, depois de uma conversa sobre os filmes que marcam as nossas vidas...)
"Que nos baste, para sermos homens, a nós que não somos santos, a certeza de que os «outros» são da vida, (...) e simultaneamente a inexorável certeza de que há um mundo onde só nós poderemos ver, reconhecer - esse onde de nada nos valerá ninguém (a não ser que a nós próprios nos ludibriemos), esse mundo primordial que raia à solidão e à morte."
"enquanto «problema», como não ver que numa dimensão de vivência toda a questão é vã?(...) O firmar ou o desventrar da ilusão não nos rectificará o sentir: uma convicção de «liberdade» ou de «determinismo» não confirma ou invalida a presença - mais profunda que tudo isso - de nós a nós próprios. (...) Do «eu profundo» bergsoniano (...) à radical liberdade de Sartre (...) [a] Merleau-Ponty (...) e Jeanne Delhomme(...) que chama liberdade ao «destino do ser»", há leituras que podem ir de um absoluto determinismo a uma escolha indefectível. “(…) Em qualquer acto humano o mais remoto ou mais condicionado está implícita uma escolha original, e o próprio acto voluntário não testemunha a liberdade que já está implicada na escolha desse acto. (…) se a liberdade é impensável, (…) em situação alguma nos furtamos à certeza de que podemos vivê-la. A consciência não é pura passividade.”
(e só para terminar, porque a tentação de colocar outros excertos é grande…)
“De que me serve, no acto puro de sentir a Arte, tudo quanto sobre ela disse? (…)
A arte é tão simples! Como a alegria, a esperança, a amargura. Como o amor. Eternamente nos explicarão o que é o amor, o que o estrutura, o define, o revela. Mas só o conhece quem o ama.”
Vergílio Ferreira, Do mundo original, Liv. Bertrand, 1979, pp. 21,15, 22, 253-254
sexta-feira, 9 de abril de 2004
entre as nuvens brancas
altas, o vagabundo azul.
entre o nevoeiro translúcido
o olhar, dádiva de palavras.
entre olhares esquecidos, a bruma
de silêncio fugidio
hesitante em confluir.
desfaço-a em ensurdecimentos súbitos
entrecortados, num sorriso,
traço-a em olhar penetrante pressentido,
em meiga boca adivinhada,
em face arcana
breve.
e o sentir demora-se
em gesto sombra incompleta,
na caixa
de singular palavra.
altas, o vagabundo azul.
entre o nevoeiro translúcido
o olhar, dádiva de palavras.
entre olhares esquecidos, a bruma
de silêncio fugidio
hesitante em confluir.
desfaço-a em ensurdecimentos súbitos
entrecortados, num sorriso,
traço-a em olhar penetrante pressentido,
em meiga boca adivinhada,
em face arcana
breve.
e o sentir demora-se
em gesto sombra incompleta,
na caixa
de singular palavra.
quinta-feira, 8 de abril de 2004
folheando...
§2
"Todo o amor não deveria fazer perguntas porque não entende as respostas que o neguem. (...) No amor não é preciso sentir, nem é necessário pensar. Nem é necessário encontrar as razões do amor, pois que se ama sem razão. É dessa razão que nascem as razões grandes do amor e nunca ninguém soube bem como elas são (...)"
António Madeira Santos, A mulher de Sal, 1974, p.45
§1
"Então para que é que a gente nasce?(...) Tudo o que se faz, é para nós próprios ou para os que nos continuam ou para o nada? (...) De qualquer modo, fosse para que fosse, procurar sempre o caminho e imolar-se com alegria à vida..."
Faure da Rosa, Retrato de Família, Guimarães Ed., 1952
"Todo o amor não deveria fazer perguntas porque não entende as respostas que o neguem. (...) No amor não é preciso sentir, nem é necessário pensar. Nem é necessário encontrar as razões do amor, pois que se ama sem razão. É dessa razão que nascem as razões grandes do amor e nunca ninguém soube bem como elas são (...)"
António Madeira Santos, A mulher de Sal, 1974, p.45
§1
"Então para que é que a gente nasce?(...) Tudo o que se faz, é para nós próprios ou para os que nos continuam ou para o nada? (...) De qualquer modo, fosse para que fosse, procurar sempre o caminho e imolar-se com alegria à vida..."
Faure da Rosa, Retrato de Família, Guimarães Ed., 1952
quarta-feira, 7 de abril de 2004
passagens (in)visíveis
Pode alguém apagar todos os vestígios de uma passagem?
Se um bater de asas se sente em lugares longínquos…. se uma gotícula pode fazer transbordar um rio…
Nas areias, só as marés e o vento podem fazer desaparecer os sinais que as gaivotas deixam na madrugada. Tentar riscá-los, só acentua a passagem, uma outra passagem.
O silêncio… o querer não ver, o querer não ser visto… não é invisibilidade.
Se um bater de asas se sente em lugares longínquos…. se uma gotícula pode fazer transbordar um rio…
Nas areias, só as marés e o vento podem fazer desaparecer os sinais que as gaivotas deixam na madrugada. Tentar riscá-los, só acentua a passagem, uma outra passagem.
O silêncio… o querer não ver, o querer não ser visto… não é invisibilidade.
terça-feira, 6 de abril de 2004
este lago verde
recolhido nas memórias de um lugar
onde as folhas de nespereira eram peixes
e os peixes, vermelhos e prata,
como a solar lua de hoje
límpida e próxima,
onde as pedras eram pontes
unindo pontos de sonhos distantes,
ainda não havia a pedra argamassa cinzenta,
as pedras eram bancos ou casas
onde nos abrigávamos do crescer,
as pedras eram tambores de água cascata
límpida e próxima,
a relva era um veludo manto
onde rolávamos e nos escondíamos,
as pedras-escadas, ruas da nossa cidade
e as outras pedras-cimento, quase círculo,
montanhas que escalávamos, suados,
e os ruídos, pássaros, água, o nosso riso
alegre e contido,
fantasias,
e as pedras metal, figuras
de braços estreitando os céus,
matéria do nosso ver,
este lago verde
onde no outono caem as folhas cansadas de doer,
este lago verde
límpido e próximo,
rio ou mar, ou o tempo
de lá
ou d’além?
recolhido nas memórias de um lugar
onde as folhas de nespereira eram peixes
e os peixes, vermelhos e prata,
como a solar lua de hoje
límpida e próxima,
onde as pedras eram pontes
unindo pontos de sonhos distantes,
ainda não havia a pedra argamassa cinzenta,
as pedras eram bancos ou casas
onde nos abrigávamos do crescer,
as pedras eram tambores de água cascata
límpida e próxima,
a relva era um veludo manto
onde rolávamos e nos escondíamos,
as pedras-escadas, ruas da nossa cidade
e as outras pedras-cimento, quase círculo,
montanhas que escalávamos, suados,
e os ruídos, pássaros, água, o nosso riso
alegre e contido,
fantasias,
e as pedras metal, figuras
de braços estreitando os céus,
matéria do nosso ver,
este lago verde
onde no outono caem as folhas cansadas de doer,
este lago verde
límpido e próximo,
rio ou mar, ou o tempo
de lá
ou d’além?
segunda-feira, 5 de abril de 2004
Estou a ser invadida!!!
sexta-feira, 2 de abril de 2004
Imagin.arte… desnud.arte… am.arte…
Quase lua cheia e as palavras são inúteis.
Para que as quero agora, neste momento, se não as consigo amar. nem tocar. nem beijar. finjo que escrevo para não ser abandono. ou desprezo. recuso palavras belas, vãs, ocas de sentido.
é a carne que rasgo. é a pele que agarro e puxo para mim. não é com elas que te seguro com força, que te ato, pernas, braços, corpo sem alma, apenas eu… e tu. quero palavras que sejam só minhas, não tuas. não quero ser violada com as tuas palavras, também não quero o silêncio.
quero o grito do teu torso, dos teus membros, do teu rosto, do teu sangue. que saia de ti e me cubra, me prenda, me possua, me inunde.
quero as tuas mãos para sentir o meu corpo de novo, cada pedaço desta membrana que nos separa, que nos isola, que nos une. quero a tua boca, toda, lábios, língua, dentes, inteira… toda a boca em mim, toda… não importa se é noite escura ou manhã clara, amarela ou raiada… que seja negro ou lusco-fusco ou dia de claridade… que aconteça lá fora, no quintal ou à beira-mar. labirintos transfundidos em expressão intensa, exasperada, perplexa. não dédalos emaranhados fúteis, vácuos, fátuos sem percursos, inícios ou formas. quero ser teu corpo, teu nome. arte.