terça-feira, 27 de janeiro de 2004

os olhos aparentemente vítreos fixavam o branco do tecto. como ele. horizontal. rígido. alvo. ao lado a mesa de cabeceira arrumada, apesar de algumas coisas dispostas como se não pertencessem ali. um papel escrito. uma caixa de papelão. fechada. um livro com uma página marcada. um fio enrolado sobre si mesmo. e os objectos usuais. o candeeiro. o copo meio vazio. o porta-retratos antigo. o quarto limpo, arranjado. quem vive só não se perde na confusão dos outros… apenas na sua.
a campainha toca.
permanece imóvel. na solidão das quatro paredes. estivera demasiado tempo só para estar com os outros. não era vontade de estar ou de não estar. era simplesmente assim. era finalmente uma escolha assumida. já que assim tinha sido, assim seria. há opções que deixam de ser opções quando são únicas. não podia trabalhar, não que não pudesse. não podia amar, não que não pudesse. não podia sentir-se feliz, não que não pudesse. apenas… não. não podia sair de sua casa, não que não pudesse, não queria, nem quereria quando os outros quisessem. lá ficaria até que lhe pegassem e a levassem. podia ter sido tanta coisa. podia ter sido de outra maneira, tudo. talvez não. as escolhas não são só meros acasos. nos acasos fazem-se escolhas.
a campainha toca pela segunda vez.
vinha à hora combinada, sempre veio, sabia que podia confiar. não por ela, pelo incómodo dos vizinhos, dias mais tarde. está tudo como deve ser. como escolheu que estivesse. finalmente. tinha sorrido. satisfeita. por si. finalmente.
ouve-se uma chave a entrar na fechadura. solta o trinco. abre-se a porta. ouvem-se passos. a porta do quarto entreaberta move-se. mais um passo.
pétalas rosas vermelhas grenás cobrem quase o branco sujo da colcha. como tinha visto num filme americano. ou numa telenovela brasileira. o cão em cima do tapete. deitado. horizontal. rígido. alvo. os olhos repousam nos olhos vítreos que parecem fixar o branco do tecto.

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