domingo, 26 de fevereiro de 2012

Dança ou do corpo com alma

Dança. danço. danças. dançamo-nos. coloco Lura no play. Nha vida. hoje. agora. neste exacto instante. só nós. a tua mão na minha. os rostos juntos. os corpos unidos. movem-se. onduleiam-se. tudo começa a evaporar. olhos fechados. o som invade-nos. nós invadimo-nos. já não és tu e eu que dançamos. é um nós. um nós de tu e eu e a música. nada mais na sala. nada mais em nós. só nós feitos de corpo. só nós, nus. nus de tudo. vestidos de som e corpo. o ritmo uno. alegria. sintonia, harmonia. a sala semi-obscurecida continua inexistente. a multidão desapareceu. a mobília desapareceu. só nós. no espaço de nós, transcendendo-o, transcendendo toda a noção de espaço. o tempo é apenas música, a música, nós dançando-nos. o corpo e o gesto. desejo movimento. sentindo eternidade e infinito. o nós incorpóreo, amando-nos somente através do corpo de nós, no corpo sonoro que nos invade. do corpo com alma.

o sol penetra-nos como uma corda. o som da água travessa-nos numa ondulação. cordas do sol. brincamo-nos. sorrimo-nos. banhamo-nos. olhamo-nos. dançamo-nos num ritmo crescente. os corpos respondem. os passos levam os nossos pés a acariciar o chão. o teu braço segura o meu corpo, encostando-o ao teu, fundindo-o em nós, os rostos húmidos desejam-se. sorriem. com as bocas. no olhar despido. dançamos dançamos rodamos devagar depressa dançamos dançamos. percorremo-nos. em alegria. sintonia. harmonia. só nós, lugar eterno.




olho-te. fecho os olhos. ouço a música, o canto dos pássaros, o nosso sorriso. o silêncio da nossa dança. apetece-me. apeteces-me tanto. desejo. -nos. na terra da sodade. na terra do fogo. na alegria, na incorporeidade da dança dos corpos unos. na leveza do esquecimento da matéria. no som das cordas de vidas.

toma a minha mão na tua.
abraça o meu corpo com teu braço. dancemos o nosso corpo de alma.
o nosso korpu ku alma...

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

amor aos pedaços

se sou inteira
se amo inteira

não quero ser amada só com a cabeça.
não quero ser amada com os pés.
nem com as mãos. nem com os olhos. nem com o sexo.
ou só com o coração.
quero tudo. inteiro.
é demais?
então não me chega.
então não me basta.

quero ser amada
sem pedaços
(muito menos migalhas)
sem intervalos
: - agora espera aí que o amor que sinto já vem, foi arejar
no amor é o tudo. ou o nada.

é.
ou não é.

...até o vagabundo andava sempre com o sol na algibeira, mesmo no relento da noite...


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

raios me partam

duas mãos. na ombreira. dois degraus percorridos. os dedos tocando-se sem olhares. dedos despedindo-se. réstias de corpos. ter de ir. ter de ir. uma lágrima. muitas. solto, arranco a mão ou parte de mim. deixando para trás, trazendo-te, trazendo-me. passos descendo os degraus como se fossem de outra. a mente, o coração algures. uma hesitação ecoa. um choro. os passos continuam descendo um imenso lanço de escadas num eco de saltos altos. um choro por detrás da porta. outra hesitação. acelero sem alterar a cadência dos passos sonoramente firmes, fujo sem fugir, porque tem de ser. tem de ser. a porta do carro. a chave. o pisca. a inversão de marcha. as lágrimas. o eco das lágrimas atrás da porta. o som das lágrimas enchendo o coração dentro do carro. acelero-me, carregando no pedal. fujo de nada. do nada. no rádio, a música, a minha resposta, a resposta à pergunta à soleira da porta, ainda na rua...


mais alto, mais alto. tão alto que ensurdeça os sentimentos. os sentimentos que se projectam na música

What I got to do to make you love me?
What I got to do to make you care?
Nada. Nada.
Nada de nada. (lembras-te?) Nada.
Nada.

senão fazer com que the lightning strikes me

Vem chuva! vem trovoada! vem árvore! cobre-me com os teus braços e ilumina-me...

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

As palavras são as mesmas
mas deixei de saber o tempo
para chegar a ti
durante meses e meses
tinha perdido o hábito
as histórias que de noite sonhas
o evidente esplendor que depois
não tomou nenhuma forma

que razão é a deste amor
que tanto se confunde
com o medo

não dizias nada
tinhas de repente uma pressa desesperada
como quem do mundo inteiro
pretendesse apenas
um cigarro
José Tolentino Mendonça, "Apenas um cigarro", in A Noite Abre Meus Olhos
Fotografia de Luca Pierro